No país em que já não há distritos, as regiões estão por cumprir

Comissão de Coordenação da Região Norte celebra esta segunda-feira os 50 anos da criação das comissões consultivas regionais. Com uma conferência, em Serralves, que pretende lançar mais achas para o debate.

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Freire de Sousa, actual presidente da Comissão de Coordenação da Região Norte NELSON GARRIDO

Não há sobre a regionalização nenhuma maldição como a que o húngaro Béla Guttmann, diz-se, “lançou” sobre o Benfica, clube que, sem ele, nem em cem anos ganharia outra taça europeia. Mas a verdade é que meio século depois da publicação do diploma legal que abriria caminho para aquilo que hoje conhecemos como comissões de coordenação e desenvolvimento regional, a regionalização, inscrita, depois, na Constituição de 1976, está por concretizar. O Guttmann desta história poderia ser António Gonçalves Rapazote, o ministro do Interior do marcelismo, e um dos duros do regime, que tremia só de pensar num novo órgão de poder, mas Valente de Oliveira, antigo ministro do Planeamento que conhece como poucos essa e outras personagens políticas, garante que houve, e ainda há, vários “rapazotes” a travar uma reforma que reputa como fundamental.

O actual presidente da Comissão de Coordenação da Região Norte, Freire de Sousa, não quis deixar passar em claro a passagem do 50.º aniversário da publicação do decreto-lei 48905, que instituiu as regiões de planeamento (ou regiões-plano) e as comissões consultivas regionais. Mas a conferência “Descentralizar o Estado, Reforçar as Regiões”, que se realiza esta segunda-feira, pelas 17h30, em Serralves, não pretende assinalar apenas uma efeméride, mas lançar mais algumas achas para um debate que algumas vozes se têm empenhado em reacender – a reboque de uma polémica, e mal aceite, descentralização de competências para os municípios – sobre a necessidade de fazer cumprir a Constituição e instituir um segundo nível de poder autárquico, o regional.

António Costa – cuja presença chegou a constar do programa – já disse que considera este debate extemporâneo, em ano com duas eleições na agenda, e não estará no Museu de Arte Contemporânea. Sem o n.º 3 da hierarquia do Estado, este passa a ser representado pelo n.º 2, Ferro Rodrigues, que também não ouvirá o seu camarada de partido e Coordenador da Comissão Independente para a Descentralização, João Cravinho, fazer a intervenção de encerramento. Em vez do antigo ministro do PS, de quem se esperava uma alusão “ao futuro das regiões”, as palavras finais ficarão a cargo de Alberto Nunes Feijóo, presidente do Governo Regional da Galiza, uma autonomia espanhola saída da Constituição de 1978 do país vizinho e que, desde os tempos de Fraga Iribarne, se relacionou estreitamente, sem condescendência, com as lideranças, não-eleitas, da CCDR-N, com a qual criou, em 1991, a Comunidade de Trabalho Galiza-Norte de Portugal.

A sessão inclui os testemunhos de personalidades como António José Barros, Elisa Ferreira, Luís Braga da Cruz, Miguel Cadilhe e Sobrinho Simões e uma intervenção de fundo de Luís Valente de Oliveira, reconhecido por muitos portugueses enquanto Ministro do Planeamento dos Governos de Cavaco Silva, mas que tem um percurso anterior marcado pela presidência da Comissão Consultiva Regional do Norte entre 1975 e 1985. Organismo ao qual chegou ainda antes do 25 Abril, para desempenhar funções técnicas, o que o torna numa testemunha-chave dos avanços e recuos que a regionalização sofreu ao longo destas cinco décadas, num país em que, garante, a “administração central emperrou”.

Responder aos novos tempos

O primeiro presidente da comissão de planeamento do Norte, João Mota Campos, afirmava, em 1971, logo na sua tomada de posse, que “a experiência alheia tem demonstrado que qualquer projecto de reforma regional carece de ser acompanhado de uma profunda reestruturação administrativa. Mas, com reforma regional ou sem ela, a descentralização e a paralela desconcentração do poder de decidir são hoje a palavra de ordem das Administrações que pretendem evoluir em termos que lhes permitam ajustar-se e corresponder às necessidades dos novos tempos”. Mas esta visão encontrou sempre detractores, como acontecia, então, com o ministro do Interior António Gonçalves Rapazote. “Planear não é desenvolver e reformar estruturas pode ser retroceder. Nem estruturas administrativas, nem técnicas, nem competências, nem poderes, nem disciplinas hierárquicas, nem cheiro de autarquia estiveram no meu pensamento quando subscrevi a lei orgânica das comissões consultivas regionais”, escrevia em Janeiro de 1972.

Gonçalves Rapazote tutelava os governos civis, braços do Governo no território de um país onde as províncias, com as suas parcas atribuições, tinham sido extintas em 1959, deixando os distritos como autarquias locais – sem funções de planeamento, contudo. Tinha contra si, e contra estes receios de perda de poder para uma nova realidade administrativa, vários protagonistas, e entre eles um jovem engenheiro civil que, já em Novembro de 1974, caído o regime, escrevia: “Julga-se como conveniente a existência de regiões-plano para cujos órgãos administrativos se deverá descentralizar grande parte das funções decisórias que hoje constituem incumbência de órgãos centrais demasiado sobrecarregados e, por conseguinte, com graus sofríveis de desempenho das mesmas”.

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Valente de Oliveira, antigo ministro do Planeamento NELSON GARRIDO

Tudo se “resume” a poder

Valente, de Oliveira, o autor desta intervenção, viu estas ideias consagradas na Constituição da República de 1976, sem nunca saírem, contudo, do papel, seja ele o do livro branco de 1981 ou o da Lei de Bases da Regionalização aprovada por unanimidade em 1991. Tudo se “resume”, nota, a poder, ou à dificuldade de partilhar poder. O antigo ministro recorda o referendo de 1998, e continua a considerar, vinte anos passados desde a consulta que perguntava à população se queria um país com regiões e lhe apresentava um mapa com Portugal Continental partido em oito para satisfazer apetites vários – contra as cinco regiões-plano existentes – que tudo não passou de “um embuste”, feito para tentar “vacinar” o país contra uma reforma crucial. “Houve, e ainda há, muitos rapazotes nesta história”, reage.

E no entanto, “isto de que estamos a tratar é tão importante, a tão longo prazo, para o futuro do país, que deveria merecer um consenso amplo dos vários partidos”, insiste. Freire de Sousa concorda. E partilha com este seu antecessor no cargo a perspectiva de que, apesar do trabalho desenvolvido nestas comissões ao nível do planeamento regional, do apoio à capacitação técnica das autarquias em áreas como o urbanismo e o ordenamento do território e, com a entrada de Portugal na CEE, na gestão, regionalizada, de parte dos fundos comunitários, ter tido um impacto muito positivo na evolução destas regiões, as assimetrias que persistem exigiriam que o território fosse governado de outra forma.

O actual presidente da CCDR-N lembra esse enorme paradoxo chamado Norte de Portugal, região mais exportadora do país, com um terço da actividade económica, que continua a ser a região mais pobre de Portugal, para considerar que “falta coser melhor” as várias dimensões do desenvolvimento regional. Os números estão disponíveis, para quem os quiser consultar, nos sucessivos boletins estatísticos que a CCDRN vem produzindo há anos, e que, na medida do possível, compensam, para quem busca informação, a perda de autonomia das delegações regionais do Instituto Nacional de Estatística, em 2004, “uma machada”. Valente de Oliveira, que as criara 15 anos antes, enquanto ministro, ainda hoje censura essa decisão do Governo de Durão Barroso.

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Luís Braga da Cruz, antigo presidente da CCDR-N ADRIANO MIRANDA

O exemplo da Galiza

Luís Braga da Cruz, que reagiu com revolta, na altura, a esta decisão, alimenta-se dos números, e da sua experiência enquanto presidente da CCDR-N ao longo de década e meia, para questionar o que poderia ter sido o desenvolvimento do país, e do Norte, em particular, se fosse outro o modelo de organização do Estado. Responsável, no lado português, pela instituição da Comunidade de Trabalho Galiza-Norte de Portugal, o antigo ministro da Economia de António Guterres considera que basta olhar para a evolução destas duas regiões para vermos como os galegos, que chegaram à Comunidade Europeia com indicadores algo piores do que os portugueses da região adjacente, acabaram por conseguir suplantar outras regiões espanholas.  

A adesão simultânea de Portugal e Espanha à antiga CEE, potenciou as relações transfronteiriças, com principal incidência a Norte, onde, assinala Braga da Cruz, nos cem quilómetros da fronteira do Rio Minho há mais actividade económica do que nos restantes 900 quilómetros dessa linha que nos separava dos vizinhos espanhóis. “O presidente Fraga considerava que o Norte era muito importante para a internacionalização das empresas galegas”, recorda, rebuscando, dos seus múltiplos encontros com o antigo presidente do Governo Regional da Galiza, a memória de alguma estranheza com que outros actores políticos galegos encaravam essa proximidade de Fraga Iribarne com um órgão e um actor regional português não nomeado, e sem a mesma capacidade de decisão.

Sobre essa disparidade, diz o antigo presidente da CCDR-N, Franco responderia a esses cépticos que a ele pouco lhe importava “que o gato fosse pardo ou amarelo, desde que caçasse o rato”. E a verdade é que, com as cores e os poderes que o país – ou quem decide – lhes quis dar, as comissões foram realizando, nestas décadas, um trabalho com impacto visível no desenvolvimento regional. Mas Braga da Cruz questiona “o que teria acontecido, tão mais depressa, e com maior impacto, se a regionalização tivesse sido feita em tempo?”

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