Regiões. Outra vez!

O debate eleitoral sobre a regionalização agrada aos pequenos partidos porque incomoda os grandes. Estes preferem adiar. Ou descentralizar à socapa. Ou desconcentrar, coisa que ninguém sabe bem o que é.

É um velho hábito, uma solução para grandes e difíceis indecisões. “Não sabes o que fazer? Regionaliza!” Há algumas semanas, uns ministros ainda fizeram um ensaio e anunciaram iniciativas de regionalização. Rapidamente embrulharam a matéria. Afinal, não seria regionalização, era mais descentralização. Recomeçaram os debates técnicos sobre o assunto, incluindo as diferenças conceptuais entre esses temas, a desconcentração e outras variantes. Depressa se percebeu que nada seria feito a breve prazo. Os motivos eram evidentes. O tema é polémico. É obrigatório realizar um referendo. Há parecenças entre partidos rivais, nomeadamente entre PS e PSD. Uma grande parte da população é contra. Dentro da aliança do Governo há enormes diferenças de conceito e de conteúdo. Finalmente, é ano de eleições. A conclusão é clara: não haverá regionalização, não haverá referendo.

Mas as coisas não são assim tão simples. Autarcas, estruturas locais dos partidos, tecnocratas e alguns governantes não abandonam. Lentamente, vão descobrindo soluções para as suas fantasias. Graças à necessidade de “descentralizar” e “desconcentrar”, assim como de “agilizar” e “simplificar”, vão-se criando dispositivos aparentemente inocentes para fazer o que aprenderam com os livros dos fundadores da integração europeia: regionalizar furtivamente! Parece ser o que pretendem agora alguns dirigentes partidários e membros do Governo. O momento é difícil. Há regionalistas na esquerda e na direita. O debate eleitoral sobre o tema agrada aos pequenos partidos, porque incomoda os grandes. Estes preferem adiar. Ou descentralizar à socapa. Ou desconcentrar, coisa que ninguém sabe bem o que é. Mas que pode, de repente, transformar-se em princípio de regionalização sem que ninguém tenha dado conta.

A verdade é que estas ideias de regionalização encobrem a vacuidade do pensamento político e são substituto de programas exigentes de modernização administrativa. Como é sabido, todos os partidos, com os grandes à cabeça, prometem a “reforma do Estado”, com a qual a política ficaria mais próxima dos cidadãos, que assim veriam os seus direitos mais bem defendidos. Esta grande reforma aprofundaria a democracia, evitaria o despovoamento do interior, aumentaria a participação cívica e diminuiria as desigualdades. É tão rica em efeitos que quase não se percebe por que razão esta virtuosa reforma não foi já decretada e realizada. Certo é que todos os governos das últimas décadas falharam neste propósito.

É verdade que a reforma do Estado é essencial. Mas não necessariamente aquela que se limita a satisfazer necessidades do pessoal partidário local e reivindicações dos autarcas com dificuldades de acesso ao Governo. Importante é a descentralização do sistema educativo e a autonomia das escolas. Decisiva é a capacidade de regulação e administração das instituições locais como as “regiões demarcadas de vinhos”, cuja realidade nada tem que ver com as regiões administrativas. Indispensável é a clarificação das relações entre público e privado, nas escolas, nas universidades e nos hospitais. Importante é a limpeza das portas giratórias e da promiscuidade nas parcerias público-privadas. Essencial é a reorganização das freguesias e dos concelhos, em particular a fusão e a diversificação de estatutos e funções. Crucial é a criação de um novo enquadramento financeiro e fiscal, garantindo a durabilidade dos compromissos de Estado. De capital importância é a revisão do sistema eleitoral com o objectivo de aumentar o poder e a identidade dos cidadãos individuais. Relevante é a clarificação das relações entre o Estado e a sociedade civil, com o reforço dos direitos e da autonomia desta última. Mas estas não são as reformas necessárias para os regionalistas.

Sabe-se que a destruição das identidades nacionais é um dos grandes programas actuais das tecnocracias, do grande capital e dos juristas esclarecidos, assim como de grupos de “reformistas” e “reformadores” que não se sentem à vontade com os quadros tradicionais da Europa. A Europa federal é o grande objectivo, o desígnio último, cumprido “furtivamente” durante décadas, mais às claras no presente. Esta é uma das hastes da tenaz antidemocrática. A outra haste é a da regionalização, que poderá mesmo ir até à criação de regiões multinacionais ou transfronteiriças. Esta é uma construção perigosa. A democracia tem uma geografia e uma história. Não há democracia sem comunidade, sem delimitação das instituições e dos poderes, sem conhecimento das responsabilidades, sem identificação dos titulares do poder, sem capacidade de nomear, censurar, demitir e substituir. Sem geografia e sem identidade, não há democracia. A cidadania exige comunidade, identidade e cidade. Os cidadãos europeus não existem, dificilmente existirão antes de séculos. A função essencial das eleições europeias é a de mascarar a definitiva ausência de democracia e a de disfarçar o embuste da cidadania europeia.

As identidades culturais, na história europeia, são sobretudo nacionais. Ou deixaram-se enquadrar pelas nações. Tal, aliás, como em grande parte dos países e Estados do mundo. O poder político nacional, por vezes com a colaboração de tradições religiosas, interpretou as identidades nacionais, nem sempre pelos bons motivos, mas o resultado foi o fortalecimento das nações e dos Estados como comunidades democráticas.

Muitas foram as tentativas de destruição das identidades culturais. Tentaram os impérios, as grandes potências conquistadoras, o grande capital e o internacionalismo comunista. Todas foram travadas ou combatidas pela democracia e pela independência dos povos. As últimas tentativas em data são as da regionalização e da construção europeia, na versão que tem triunfado nos últimos anos. Assim a Europa (Comunidade e a União), com início promissor e de inspiração valiosa, derivou, derrapou e foi longe de mais. Tão longe que acabou por se pôr em risco, como é a situação em que vivemos. Tão longe e tão fora das capacidades de controlo e de participação que é bem possível que caminhe para a sua própria destruição. E de mais nada servirá dizer o que tanto se tem dito: “Crise na Europa? O que é preciso é mais Europa!” E mais regiões!

A regionalização é a resposta errada. Trata-se de diversão burocrática e tecnocrática, na tentativa de encobrir as reais reformas difíceis e decisivas. A regionalização furtiva é ainda pior, pois pretende o mesmo, com menos clareza, sem referendo, sem participação popular.

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