doceMinda: “Os ricos comiam as flores, nós pobres comíamos as filhoses"

A dona Orminda começou por brincadeira a fazer "florinhas", um frito moldado a ferro. Hoje é doceira de mão cheia, faz e vende "doces finos" e "doces grossos" em Escalhão, perto de Figueira de Castelo Rodrigo.

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Teresa Pacheco Miranda

A mãe de Orminda tinha cinco filhos. E tinha um forno a lenha onde cozia os bolos. “Era biscoiteira”, diz a filha, que tem a quem sair. “Éramos garotos e íamos para lá ajudar. Ela cozia os bolos nas latas barradas com azeite e polvilhados com farinha e cobrava às pessoas que lá iam por cada tabuleiro. Era uma vez Escalhão, uma aldeia com muita tradição em doçaria. A dona Orminda, ferro na mão e azeite a ferver, meteu-nos na máquina do tempo e fez com que mergulhássemos nos potes vidrados cheios de biscoitos e nos lambuzássemos à volta de uma Flor. “Não quero cá bolos tortos! Comi muitos de garota.” Palavra de Doce Minda.

Pouco sabemos de Escalhão. Que fica a meia dúzia de quilómetros de Figueira de Castelo Rodrigo, que a freguesia é banhada pelo rio Águeda e pelo Douro — e pela ribeira de Santa Maria de Aguiar — e que a tradição de doçaria resiste. “Era uma zona onde se semeava e se fazia muito pão”, recorda Orminda, auxiliar de lar que começou por “fazer flores por brincadeira”. Massa de farinha de trigo, ovo em abundância e leite aromatizado com canela. “Não faço vida disto, mas não fujo às minhas raízes. O que eu faço é mesmo de Escalhão.”

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Toda a gente gostou das “florinhas”, uma massa que cresce no azeite a ferver e é moldada por um molde de ferro — feitos por ferreiros da região — que só obedece ao seu dono. “Podemos emprestar o ferro, mas só a pessoas muito conhecidas e amigas. Cada um tem uma marquinha para não nos enganarmos no ferro. Uns são mais altinhos, outros mais apertadinhos ou mais larguinhos.” Este é o da dona Orminda. “As flores ficam com a mesma textura e com esta crocância.” E em forma de flor de Calatrava, uma cruz de quatro braços iguais, com flores-de-lis (uma figura heráldica muito associada à monarquia francesa, particularmente ligada ao rei da França) nos extremos dos braços.

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A receita terá nascido no Convento de Santa Maria de Aguiar. Já se faziam flores lá em casa? “Sempre, sempre”, responde. “E os biscoitos todos do forno a lenha”. “Nesta altura da Páscoa a minha mãe passava mês e meio a fazer. Conservam-se meio ano, um ano até. Metem-se nos potes vidrados que temos lá na aldeia. Tapava-se e a gente tirava. São biscoitos à base de azeite. Biscoitos de Escalhão. Ficam sempre muito saborosos.”

A família de Orminda “era gente muito pobre”. O pai trabalhava no campo. A mãe era biscoiteira. “E toda a gente que ia cozer ao forno dizia assim ‘oh Celeste, este fica para o garoto!’ O que é que nos davam? Os tortos, os que levavam com a pá, os mais empenados. Quando cresci e comecei a fazer bolos, decidi nunca comer esses. Comi muitos de garota, não quero cá bolos tortos!”

Ainda hoje Orminda os divide por categorias: os doces finos (a flor de amêndoa, a espuma de açúcar com amêndoa torrada e os almendrados esquecidos que se desfazem na boca) e os doces grossos, os mais económicos que eram os biscoitos dos pobres (biscoitos de azeite da cooperativa de Escalhão) e que “não têm segredo nenhum”. “As pessoas ricas de Escalhão tinham um bolo mais fino do que os pobres. Tinham suspiro de claras misturado com amêndoa torrada. Nem todos os pobres tinham amêndoa de colheita. Os ricos comiam as flores, nós pobres comíamos as filhoses”.

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Flores polvilhadas de açúcar e canela, flores com Queijo da Serra e mel, flores ao pedido do freguês. Orminda democratiza-as — um euro as simples, dois as “ornamentadas”. Quantas faz por ano? “Ui, ui, ui!” Aguentam três, quatro meses. Mas não resistimos um minuto. Flor com creme de ovo e amêndoa torrada de produção caseira. Ingredientes simples moldados por um ferro em brasa. Castanho dourado.

Orminda começou por fazer compotas (de maçã e Vinho do Porto, de ginja, de morango e de abóbora), que hoje enfrasca como relíquias, com lacre e as letras “DM”. Faz marmelada branca e licor. Faz licores também. “Licor de quê?! Nunca digo do que é. Prova que já vês! Depois de dois ou três já vês como ficas.” Tem o seu espólio num edifício da câmara que já foi uma creche — e rodeado por amendoeiras. As flores finas e estaladiças, os biscoitos rudes, os frascos de provas com os tortos e empenados.

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