Os perigos da personalização da Justiça

Não vale tudo em democracia, por mais que discordemos dos seus actores.

Já nestas páginas me pronunciei, de um prisma jurídico, sobre o chamado “acórdão da mulher adúltera” e sobre o mais recente sobre a decisão de retirar a pulseira electrónica por se ter entendido não cumpridos os requisitos legais. Proponho, hoje, uma reflexão a partir daqui.

Todo o cidadão tem direito à honra, como o proclamam os textos de direito internacional, europeu, a Constituição, o Código Civil e o Código Penal. É certo que na escala de valores, o legislador considera este bem jurídico-criminal como dos menos importantes, por isso dificultando o acesso à acção penal, sendo, em regra, crimes particulares (tem de haver queixa do ofendido, este tem de requerer a um juiz a sua constituição como assistente do MP em 10 dias, e, no fim do inquérito, deduzir a acusação particular que pode ou não ser acompanhada pelo MP). Em regra, a constituição como assistente tem um custo de 102 euros, a título de taxa de justiça, sendo que o assistente tem obrigatoriamente de ser representado por advogado. É certo que existe o apoio judiciário, mas é preciso ser reformado ou desempregado, com baixos rendimentos para que a Segurança Social o defira. Há muita gente sem acesso à Justiça, visto que as regras do apoio judiciário presumem que um casal com o salário mínimo é “quase rico”. Urge dedicar mais atenção a este cancro da democracia e do Estado de Direito. 

Os juízes são pessoas – truísmo que parece verdade redescoberta nos dias que correm –, também com direito à honra na sua vida privada e naqueles actos que resultam do exercício das suas funções. No caso Neto de Moura, porque se entende que um juiz, um professor, um árbitro de futebol que, pelo exercício das suas funções ou por causa delas seja injuriado, existe ainda um interesse comunitário na protecção do bem jurídico, o crime é semi-público, bastando a apresentação de queixa no prazo de seis meses.

Ora, sempre que ensino as consequências jurídicas do crime, lembro aos estudantes que por mais que o CP contenha grelhas de leitura e de análise, operações de determinação da medida concreta da pena, há sempre um espaço de discricionariedade vinculada a favor do juiz. Na verdade, não é do juiz, mas de toda a comunidade. É farisaico dizer que, com os mesmos factos provados, a sanção será a mesma em qualquer tribunal do país. Não será, por muito que existam factores de medida da pena, teorias como a da “moldura da prevenção” e, sobretudo, a obrigação de fundamentação. É a partir dela que se interpõem recursos onde, por vezes, apenas se discute o “quanto” da pena – e daí ter sublinhado ser uma discricionariedade vinculada. E bem. Já houve uma corrente no Direito que defendia a criação de programas de software em que se inseria uma quantidade imensa de informação sobre a idade, modo de execução, consequências do crime para a vítima, entre tantas, que, através de um algoritmo, se atingia um número mágico que seria igual em todo o país. A tecnologia substituiria o Penal e voltaríamos aos tempos do Iluminismo em que o juiz era “autómato da subsunção” e “a boca que pronuncia as palavras da lei” (veja-se Beccaria ou Montesquieu). Já se viveu no mito que a lei pode nunca precisar de interpretação. Falhou, porque é mesmo um mito. Interessante seria pensar nas sentencing guidelines dos EUA e de outros países do common law e estudar profundamente o que delas podemos retirar de positivo.

Se há leis obscuras, mal escritas – ao ponto da ininteligibilidade –, com buracos propositados? Claro. A que não é estranho o facto de ainda se admitir que advogados sejam deputados, vestindo o fato de legisladores de manhã e aproveitando o trabalho feito à tarde nas sociedades a que pertencem. Se um dia cometer um crime, quero ser julgado por um ser humano como eu, que mais facilmente compreenderá os meu actos e os censurará proporcionalmente. Se for julgado por uma máquina, revoltar-me-ei.

Já senti a dor de clientes injuriados, de entre eles magistrados. Há posições que defendem, até, que se acabe com os crimes contra a honra e eles sejam transformados em meras contra-ordenações puníveis com coima. Todos sabemos que “a honra já não é o que era”, mas recuso viver numa sociedade que tão pouco concede a que alguém deva ser respeitado em todas as suas esferas de actuação. É óbvio que só casuisticamente se pode aferir se se ultrapassaram ou não os limites da liberdade de expressão e da criação artística. Mas nenhum deles é ilimitado, como também o tem dito o TEDH, em alguns casos, a meu ver, parecendo deixar muito pouco espaço para o que é, afinal, a honra. Estamos todos recordados de um texto em que se caracterizou o PR de então como “palhaço”. Claro que estávamos perante o crime de ofensa à honra do PR, mas o MP foi muito rápido a sobrelevar a liberdade de expressão, sem que se discutisse devidamente o fundo da questão.

Não vale tudo em democracia, por mais que discordemos dos seus actores. Também podemos discutir a estratégia “política” de accionar criminalmente quem tenha, porventura, ido longe demais, mas não podemos ficar indignados por um cidadão exercer um direito e beneficiar de isenções justificáveis, porque motivadas pela profissão que detém ao serviço da República. É um respeito sem subserviências, denunciando de modo veemente o que se deve denunciar, mas não personalizando instituições como a Justiça. É meio caminho para a sua doença e, com ela, para uma doença grave de todo o Estado de Direito democrático.

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