O cidadão fiel ao Direito que dá socos na cabeça da mulher...

Um jurista sabe que, se uma solução obtida a partir da aplicação das normas vigentes for contrária à dignidade da pessoa humana, esta é inaceitável.

Continua a Guerra Santa no órgão de soberania que é o Tribunal da Relação do Porto: no recente acórdão em matéria de crime de violência doméstica relatado pelos desembargadores Neto de Moura e Luís Coimbra é-nos dito que “(...) a mais banal discussão ou desavença entre marido/companheiro/namorado e mulher/companheira/namorada é logo considerada violência doméstica e o suposto agressor (geralmente, o marido ou companheiro) é diabolizado e nenhum crédito pode ser-lhe reconhecido”. O Diabo continua com má reputação nos acórdãos deste tribunal superior, sabe-se lá se por influência da tradição judaico-cristã na aplicação da Justiça em Portugal, um pouco estranha no Estado laico que julgamos ser.

O acórdão em apreço revê a sentença anteriormente proferida pelo Tribunal de Matosinhos, rejeitando o pedido de indemnização cível anteriormente feito, reduzindo a pena aplicada pelo aludido crime e revogando a decisão de recurso a meios de vigilância eletrónica, para assegurar o afastamento do arguido do local de trabalho/residência da vítima. Apesar de constar do rol de factos provados que um dia “o arguido chegou à residência comum do casal, após ter consumido bebidas alcoólicas em excesso, agarrou numa catana que exibiu em direção à C..., e disse-lhe:vou matar-te e depois mato o teu filho!'”, e de, noutro, lhe ter “desferido vários socos” na cabeça que lhe causaram perfurações num tímpano, edemas, hematomas e escoriações, o arguido é considerado pelo tribunal como não revelando “graves problemas de inserção social”, afirmando-se mesmo que “tirando os factos por que foi julgado, apresenta-se como um cidadão fiel ao direito”.

Esta afirmação, aparentemente inócua, é fundamental no Direito Penal: desde finais do século XIX que a doutrina portuguesa importou e com frequência recorreu à ideia do “amor ao Direito” que o cidadão comum se pressupõe ter. O cidadão cuja personalidade seja bem formada, intuitiva e naturalmente cumpre o que está escrito na ordem jurídica do seu país. Foi o reconhecimento da importância desta ideia que levou o ministro nazi da Propaganda, Josef Goebells, a sugerir que positivassem na lei todas as soluções pensadas para identificar, afastar da vida pública, deter e finalmente eliminar fisicamente os judeus: “Têm que ser consagradas num diploma”, afirmou. E foi um sistema jurídico resultante de um poder inicialmente democraticamente eleito, formal e tecnicamente preciso que permitiu o Holocausto alemão. A consciência de que a aplicação conscienciosa do Direito vigente num pretenso Estado de Direito poderia causar um genocídio levou à adoção da Lei Fundamental da Republica Federal Alemã de 1949, fundada na dignidade da pessoa humana, que influenciou a nossa Constituição de 1976, à recusa do estrito positivismo jurídico e ao regresso do Direito Natural, como limite não escrito da liberdade do legislador e do aplicador do Direito.

O que interessa esta afirmação para a análise do acórdão em questão? Interessa porque, à semelhança de um matemático que sabe que, se o resultado de um problema que está a tentar resolver for uma probabilidade negativa de um fenómeno ocorrer, este está necessariamente errado, também um jurista português sabe que, se uma solução obtida a partir da aplicação das normas vigentes for contrária à dignidade da pessoa humana, esta é inaceitável.

A argumentação técnico-jurídica relativa à aplicação do atual Direito Penal dos senhores desembargadores certamente estará correta no que concerne à determinação da medida da pena principal e aos pressupostos a que obedece a aplicação da pena acessória de proibição de contactos. Mas talvez fosse possível, recorrendo às “válvulas de escape” do nosso sistema jurídico (que são várias, de diferente natureza e permitem afastar soluções que se afiguram como injustas para a generalidade dos cidadãos), prevenir uma decisão judicial que deixasse completamente desprotegida uma mulher que tem fundado receio do ex-marido e foi (é?) por ele reiteradamente ameaçada e ofendida na sua integridade pessoal, na sua dignidade.

Facilmente se compreende o afirmado se perguntarmos: sendo frequentes as recaídas no alcoolismo, quem será responsável se o arguido recair, tornar a dar socos na cabeça da ex-mulher e, desta vez, a matar? Ou se, quebrando-se o “vidro” que julgamos existir entre as classes sociais, o arguido se envolver afetivamente com alguém próximo dos senhores desembargadores? Continuarão a dormir descansados?

Se nos situarmos no plano da Ética das Virtudes, o arguido, faça o que fizer, pode continuar a ser um “cidadão fiel ao Direito”. O amor ao Direito, ao contrário de outras formas de afeto, é, em regra, para toda a vida: nunca vacila, nem termina. É, na verdade, o que nos faz levantar da cama a todos nós, cidadãos comuns, em cada dia que passa. Professora de Direito da Igualdade Social da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa​

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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