Enquanto discutimos, o mundo aquece

Apesar de todo o cepticismo e da ignorância de alguns líderes mundiais, as alterações climáticas são uma realidade. Mas talvez seja preciso que o ambiente prejudique mais o crescimento económico para levarmos o problema a sério.

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Renato Cruz Santos /Arquivo

Verdade ou consequência? No que diz respeito ao clima, o mundo está actualmente a enfrentar as dois “castigos” ao mesmo tempo. Mas o problema é que ainda não dói. A percepção da maioria das pessoas coincide com o consenso científico sobre estarmos já a sentir os efeitos das alterações climáticas e de os seres humanos serem o seu principal agente causador. Porém, algures neste caminho, população, decisores e cientistas deixam de caminhar juntos. Até que ponto estamos mesmo preocupados com as alterações climáticas e com os cenários anunciados para 2100? Afinal, em 2100 já não estaremos cá para ver. Muitos acreditam que a tecnologia vai resolver os problemas do clima que hoje nos preocupam. E essa é uma perigosa percepção que, na realidade, nos pode tramar.

Esqueça as previsões para 2100 e modelos do clima concebidos por cientistas das mais reputadas organizações do mundo. Recorde apenas o tempo nos últimos dias. Esta semana os dias estarão mais cinzentos, mas em Fevereiro, as temperaturas em Portugal ultrapassaram os 25 graus em várias cidades, muito acima da média para a altura do ano, e o inusitado Verão foi estranhamente bem acolhido em pleno Inverno. Sabe bem, é certo, mas não é normal. Um dias antes, em Janeiro, os EUA atravessaram uma das piores vagas de frio de todos os tempos com temperaturas mínimas de 40 graus negativos e num dos seus insensatos desabafos, o Presidente norte-americano Donald Trump tweetou para o mundo: “Mas o que é que se passa com o Aquecimento Global? Volta depressa, por favor, precisamos de ti!” O mundo, que ainda lhe presta atenção, respondeu com indignação e factos. O “tal” aquecimento estaria naquele exacto momento atrapalhado a sufocar a Austrália com mais de 40 graus Celsius positivos em muitas cidades. Por todo o lado, os cientistas foram chamados a comentar o fenómeno claramente associado às alterações climáticas. O aquecimento global é uma das manifestações das alterações climáticas. Como os fenómenos extremos também são. Ou seja, como as vagas de frio também são. Ou os incêndios ou os furacões ou as inundações ou as secas.

Portugueses preocupados?

Mas deixemos o mau exemplo dos EUA que tem servido para reconfortar muitos líderes mundiais com a certeza de que há pior do que não fazer nada. No final do ano passado, foram divulgados os resultados do Inquérito Social Europeu sobre alterações climáticas e energia. O documento destaca Portugal: “A preocupação com as alterações climáticas é particularmente elevada em Portugal, Espanha e Alemanha, sendo que Portugal é único país onde mais de 50% da população refere estar muito ou extremamente preocupada com a questão.” Os portugueses voltam a ser chamados quando se fala na preocupação com a acessibilidade da energia mostrando que só são ultrapassados por Espanha (com 70%) na inquietude de 68% dos inquiridos sobre este tema.

Apesar disso, o Eurobarómetro divulgado no final de Fevereiro deste ano refere que as preocupações dos portugueses com o ambiente, clima e energia ficam bem abaixo dos 14% da média europeia, registando apenas 3%. Em que ficamos? “Pois, não sei explicar”, responde o físico Filipe Duarte Santos, especialista em alterações climáticas da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS).

Os especialistas dizem que a percepção das pessoas está muito relacionada com o que acontece perto de cada uma delas. Mais do que as imagens de catástrofes longínquas, para o cidadão comum importa o que acontece à nossa porta. Mas o tempo que faz hoje na nossa cidade é algo muito diferente do clima, avisa Filipe Duarte Santos. “Temos uma percepção muito imediatista e uma memória curta sobre o tempo, queremos que este fim-de-semana esteja sol porque temos planos, um agricultor já vai querer que chova porque está preocupado com a sementeira que fez”, exemplifica. O clima é outra história, mede-se com instrumentos e observações cuidadosas e analisa-se em períodos de 30 anos. “Através de inúmeros dados relativos ao historial de milhões de anos da temperatura e da composição da atmosfera, os cientistas sabem que a mudança que estamos a presenciar não tem precedentes”, garante Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero.

Fazedores de nuvens e outros milagres

Mas a percepção das pessoas estará assim tão distante da narrativa dos cientistas? “Estamos a falar de um fenómeno global que se manifesta de formas muito diferentes em diferentes partes do mundo. Há lugares, por exemplo, onde está a chover mais do que no passado. E as pessoas acabam por ter apenas a percepção do que se passa no sítio onde estão”, diz Filipe Duarte Santos. Ler numa notícia que os EUA tiritam de frio enquanto os australianos derretem à sombra não é suficiente para convencer as pessoas, defende o físico. O clima é influenciado por muitos factores, agentes extraterrestres e terrestres, naturais ou antropogénicos (causados pelas actividades humanas), que interagem uns com os outros de formas diferentes em diferentes locais.

Por isso, conclui Filipe Duarte Santos: “As pessoas não têm noção da gravidade do que se está a passar. Não percebem que estamos num processo que não está controlado, estamos a modificar a composição da atmosfera. A narrativa científica identificou esse problema e as consequências. Mas são efeitos que não são imediatos, é um processo relativamente lento. Não parece ser uma catástrofe dramática para a maior parte das pessoas do mundo.” Pelo menos, por enquanto.

Francisco Ferreira alinha no mesmo discurso. “A situação actual é mais grave do que a percepção comum, mas tal é compreensível na medida em que a resiliência do clima leva a que a tradução do aquecimento global em impactes e consequências que poderão ser dramáticas demora o seu tempo”, diz. O ambientalista e investigador ainda não se cansou de propagar a imagem da panela a ferver. “Se colocarmos a mão numa panela que esteja a aquecer devagar aguentamo-la lá até à água estar bem quente; se mergulharmos a mão em água bem quente retiramo-la de imediato.”

Um estudo divulgado no final de Fevereiro na revista científica PNAS analisou mais de duas mil milhões de publicações nas redes sociais e encontrou o efeito do “sapo a ferver”, ou seja, as pessoas estão a habituar-se às temperaturas historicamente extremas. Reza a história (um mito, já que cientificamente a experiência não se comprova) que um sapo colocado em água quente reage e salta fora do recipiente, mas se o colocarmos na água fria e formos aquecendo a água progressivamente, ele ficará parado, a cozer lentamente. O sapo seriamos nós, claro. Ao que tudo indica, a nossa curta memória em relação ao clima guarda apenas o que se passou nos últimos dois a oito anos e, assim, acaba por normalizar as condições extremas que vivemos.

A água (ainda) não está a ferver mas também não sabemos como desligar o lume. E a preocupação que pode existir em muitas pessoas esbarra numa certa impotência, defende Filipe Duarte Santos. Fala-se, por exemplo, na urgência de fazer uma transição energética, de deixarmos de consumir combustíveis fosseis, mas ainda não há alternativa. “Como é que me desloco? Tenho o meu carro, é muito confortável, tenho gasolina em vários postos espalhados pelas estradas fora. A questão ultrapassa a maior parte das pessoas. E essa maior parte desliga-se”, constata o físico.

Paulo Santos, professor na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, é um dos autores de um estudo relacionado com as percepções dos estudantes universitários portugueses sobre mudanças climáticas. O mais grave, diz, é “a inconsistência entre as atitudes e a percepção que anunciam, desde o cidadão ao decisor”. Mais de 120 estudantes foram inquiridos em 2015 e 99% disseram que acreditavam que as alterações climáticas estavam mesmo a acontecer. No entanto, apenas 44% afirmaram estar muito preocupados com o tema, 74% defenderam que as acções para mitigar os efeitos das alterações climáticas devem ser tomadas pelos governos e 34% respondeu que não fazia nada para travar o fenómeno.

O movimento pela “justiça climática” iniciado recentemente pela jovem activista sueca, Greta Thunberg, pode ser um sinal de mudança ou apenas uma moda passageira. Greta Thunberg, de 16 anos, iniciou - sozinha - uma greve estudantil pelo clima que a tornou um fenómeno mundial. Mas, será que esta atitude mais combativa vai durar? E será que vai conseguir verdadeiramente mudar alguma coisa?

No dia-a-dia das pessoas encontramos uma crónica miopia. Temos contas para pagar agora no final deste mês e, por isso, é difícil ficar muito inquieto com um planeta aflito em 2100. Até lá, logo se verá. Muitos colocam todas as fichas do jogo numa aposta na inovação e desenvolvimento tecnológico que (cruzem-se todos os dedos das mãos e dos pés) será capaz de desencantar uma solução milagrosa para o problema das alterações climáticas. Se um dia correremos o risco de ver desaparecer as nuvens e com isso a temperatura aumentar significativamente, como refere um estudo publicado há poucos dias na revista Nature Geoscience, hão-de aparecer cientistas fazedores de nuvens. Se os oceanos mudarem de cor e o planeta Terra visto do espaço também, havemos de conseguir forçar o azul. A jogada é arriscada. Porque não há plano B ou, como anunciam os ambientalistas e activistas, não há planeta B. “A perspectiva de surgirem tecnologias que nos permitam atenuar o ritmo do aquecimento global é ainda muito incerta e com custos muito elevados, o que nos leva a ter de fazer apostas mais estruturantes”, afirma Francisco Ferreira.

A época do egoísmo

Depois, há muitas pessoas que descansam a cabeça na almofada do poder e dever dos decisores políticos. Afinal, tivemos (com mais ou menos ambição) o Acordo de Paris de 2015, com os líderes mundiais a concordar na urgência de salvar o planeta e reduzir as emissões de dióxido de carbono (C02) para a atmosfera. O Acordo de Paris tem por objectivo não aumentar a temperatura média global do planeta em mais de dois graus Celsius relativamente ao período pré-industrial (cerca de 1850). Neste momento, já se aumentou essa temperatura em 0,87 graus Celsius. Portanto, só temos mais um grau Celsius.

Em 2018 as emissões de CO2 continuaram a aumentar e as concentrações de CO2 na atmosfera aumentaram em média cerca de 2,3 partes por milhão para atingir cerca de 407 partes por milhão ao longo do ano. Ou seja, 45 % acima dos níveis pré-industriais. O ar está cada vez mais pesado e o planeta cada vez mais ofegante. “Estamos numa verdadeira emergência climática ao estarmos a atingir níveis de dióxido de carbono na atmosfera que são inéditos, a estabelecermos recordes de temperatura ou a olharmos para as últimas décadas como as mais quentes desde que há medições fiáveis da temperatura”, insiste Francisco Ferreira.

É verdade que o clima tem variações desde que a Terra existe. Ao longo de milhões de anos, há épocas geladas que alternam com períodos tórridos. É, portanto, um caminho natural? Não. A rapidez das mudanças climáticas nos últimos cem anos não terá precedentes na história da Terra.

Mas ainda não o sentimos na pele. “Estamos numa época em que o que conta são os nossos interesses pessoais. É a época do egoísmo”, reage Filipe Duarte Santos. E nos nossos interesses pessoais não cabe a velha história de preservar o futuro dos nossos netos? “Isso cabe, mas de uma maneira muito abstracta. É aí que entra a convicção errada de que quando os nossos netos tiverem a nossa idade o mundo vai estar muito melhor do que agora, as tecnologias e a ciência vão evoluir extraordinariamente e isto que parecia um problema dificílimo de resolver afinal resolve-se muito facilmente”, diz o físico, resumindo que “este é o discurso da economia neoclássica ou, se preferir, neoliberal”.

Por falar em economia, o físico lembra ainda que o ambiente é sempre considerado como um “empecilho” ao desenvolvimento. Mas, avisa, a percepção mais errada que existe neste momento é que “o que estamos a fazer em termos de degradação ambiental, exploração de recursos e alterações climáticas não está a ter um impacto negativo sobre o crescimento económico”. Está, assegura. Mas tem de doer ainda mais. As alterações climáticas já custam caro. “Mas é preciso que custe muito mais.” Só com essa percepção vamos ter outra realidade.

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