Normas de orientação clínica e ADSE

À escala portuguesa não há “ricos” que aguentem tantas e tão poderosas empresas privadas de serviços de saúde. Sem a ADSE faliam.

A discussão sobre o conflito entre a ADSE e os prestadores privados de saúde leva-nos a trazer para análise pública a relação das Normas de Orientação Clínica (NOC’s) e a prática de prestação de serviços a funcionários do Estado, contribuintes e beneficiários daquela organização. O conhecimento destas questões clínicas deve fazer parte da literacia da população, para além das discussões, que parecem administrativas ou estritamente políticas.

As NOC’s constituem um corpo de orientação em relação a um conjunto de doenças, o seu diagnóstico, tratamento e prevenção. Uma grande inspiração para estas normas foram as NICE, do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido. No caso desse país são estabelecidas pelo National Institute of Clinical Excellence, independente, e são rigorosas e estritas para que o Serviço Nacional de Saúde não gaste mais do que o necessário. A indústria farmacêutica tem sempre os olhos postos nessas normas, pois sabe que são uma forma de vigilância e uma triagem em relação às inovações e à dispensabilidade.

Em Portugal, as NOC’s foram criadas no âmbito da Direcção-Geral da Saúde (DGS) com comissões de especialistas de reconhecida idoneidade e podem ser consultadas no portal da DGS. De acordo com elas estabelecem-se regras para os pedidos de exames auxiliares de diagnóstico. Por exemplo, não há qualquer justificação para que uma mulher, em idade anterior à menopausa e sem qualquer factor de risco de osteoporose, faça uma densitometria óssea. A justificação desta regra está antes de tudo na saúde da pessoa, pois no exame há radiações, mas está também nos custos.

Podem dar-se vários exemplos em várias áreas, para esclarecimento de quem está fora do meio. Um caso corrente é a opção entre ecografias ou tomografia axial computorizada (TAC). As primeiras são baratas e não usam radiações, as segundas são mais caras e aplicam radiações. Em relação às cirurgias, há muitos exemplos. Em alguns casos a perspectiva é tirar o órgão, sendo outra posição a chamada “conservadora”, não tirar. Analisando o que se passa a este respeito nos países onde o sistema de saúde é na base de seguros como na Alemanha, ou da Sécurité como em França, um doente pode escolher ser operado no hospital público ou optar por um cirurgião privado, em clínica privada, pagando o sistema posteriormente ao prestador.

Muitos doentes desses países, alguns até os nossos emigrantes, apreciam a possibilidade desta opção, porque o acesso é fácil. No entanto, nesses países, cada vez se põe mais em causa o critério da opção cirúrgica privada e preferem o hospital público. Ficar sem um órgão, como a tiróide, os ovários, o útero, não traz risco de vida, mas o critério para essa intervenção tem que ser discutido responsavelmente em colectivo. Aliás, os sistemas desses países são bem mais caros, em consequência desse leque e uso de opções, e os resultados ao nível de morbilidade e de mortalidade são equiparáveis ao nosso país e ao Reino Unido, de acordo com os dados da OCDE.

Para quem lê esta explicação, torna-se evidente que há aspectos conflituantes entre os serviços prestadores privados e os seus clientes, entre eles sobretudo a ADSE.

Nos serviços públicos há normas a seguir. Nos Centros de Saúde há limites para as análises clínicas, pois os utentes não podem andar a fazer exames com uma frequência desnecessária, embora muitos o desejassem. Se houver necessidade fora das regras, tem que ser discutida clinicamente. Nos hospitais públicos não se podem fazer cirurgias desnecessárias ou discutíveis tal como exames mais caros, porque há reuniões clínicas semanais para tomar essas decisões e há muita discussão quando os casos estão no limite da opção. Além disso, nos hospitais públicos, mesmo nos grandes centros hospitalares, toda a clínica é muito sufragada. Tal como nas aldeias, “sabe-se tudo”.

O que é que se passa pois com os exames auxiliares de diagnóstico e as opções cirúrgicas realizados nas instituições privadas, quando o pagador é a ADSE? Porque quanto aos seguros privados o assunto é fácil de resolver por estes últimos – quando chega ao plafond fecha-se a torneira. É nessa altura que os doentes passam para os serviços públicos. O conflito de interesses é este: nos serviços públicos, quanto menos se gastar dentro do necessário, melhor. Nos hospitais PPP a lógica é também esta, quanto menos gastarem para prestar os mesmos serviços, com o mesmo orçamento, melhor. É o caso do número de camas de doentes internados atribuídos a cada enfermeiro nas PPP, que chega a ser maior do que no público e, por sinal, não aparece reclamação dessa poupança. Mas no caso das empresas privadas de prestação de serviços à ADSE, quanto mais se gastar, melhor.

Quando o doente tira sangue para uma análise tanto lhe faz que seja para dez, como para 20, como para 30 doseamentos. Na perspectiva do prestador, o público faz o possível para que sejam dez, o privado faz o possível para que sejam 30. Ora, a diferença entre 30 e dez, ou entre uma ecografia e uma TAC, ou entre uma atitude “conservadora” ou uma cirurgia radical é discutível? É. É criminal? Não é. É ilícito? Dificilmente se prova. Pode, no entanto, passar a fronteira do lícito e transformar-se em fraude, como já foi dito por alguém muito responsável na comunicação social. Um parto pode ser natural ou recorrer-se a cesariana. Há mais cesarianas no privado do que no público. E há critérios para escolher entre os dois procedimentos. Mas é difícil ou impossível verifica-los a posteriori. E há alguém para vigiar a aplicação das NOC’s nos privados? Não tem havido. A ADSE é um instituto com fins não lucrativos, independente, uma espécie de Caixa/Mútua opcional para os funcionários do Estado. 

É ela que tem que cuidar das formas de aplicação do seu orçamento e do combate à fraude, olhando sempre para esta evidência: os custos de pagamentos da ADSE às entidades privadas constituem 25% do movimento financeiro destas e talvez seja a margem de lucro. À escala portuguesa não há “ricos” que aguentem tantas e tão poderosas empresas privadas de serviços de saúde. Sem a ADSE faliam.

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