Altice: as aparências iludem

A Altice já foi um porta-aviões, mas está a caminho de se tornar num “hiper-mega-nano” barco a remos.

Estamos naquela fase do ano em que ainda olhamos para o retrovisor, num momento em que são permitidos balanços: quantos quilos de carne comemos desnecessariamente, quanto lixo produzimos, em que exageramos? Eu faço o meu balanço em relação às perdas e ganhos que o Código do Trabalho (CdT) trouxe a cada um dos trabalhadores em Portugal.

Depois dessa investida tremenda que foi o consulado PSD/CDS, seria desejável que tivéssemos, hoje, outro enquadramento: limitar o número de contratos a prazo é bom mas alargar o período experimental anula o efeito; batalhar para que o flagelo da precariedade termine mas assistir ao crescimento das empresas de outsourcing que exploram seres humanos apenas para maximizar o lucro, é chover no molhado; subir o salário mínimo mas não combater a sério as desigualdades sociais, é no mínimo contraditório.

As alterações legislativas ficaram até agora aquém das expectativas. Mas ainda se vai a tempo de fazer um pouco mais antes de se entrar, definitivamente, em modo pré-campanha eleitoral para as legislativas. E, tenho um feeling, que ainda mais se vai construir na próxima legislatura.

Ao contrário do que nos tentam vender, quem trabalha serve para encher os buracos da folha de Excel. Nas multinacionais preocupam-se com a maximização do lucro. Na Altice, como noutras, muitos deixaram simplesmente de acreditar que terão um futuro profissional que passe pelo reconhecimento e valorização. A prática de baixos salários e precariedade crescente é recorrente e a PT/MEO não foge à regra. Os que ainda imaginam os trabalhadores da PT como privilegiados, desenganem-se. Foi tempo.

Foi nesta empresa, contudo, que aconteceu uma das vitórias de David contra Golias mais simbólicas destes anos. A oposição à decisão da Altice de usar a “transmissão de estabelecimento” para se desembaraçar de trabalhadores, transferindo-os para outras empresas em piores condições, fez mover montanhas, deu origem a um manifesto (em que estive envolvido e que foi divulgado neste jornal), motivou uma greve histórica e uma manifestação nacional com largos milhares de pessoas, que obrigou o Parlamento, numa inédita iniciativa conjunta do PS/Bloco/PCP a mudar a lei (a primeira e única vez que, no campo laboral, houve um texto de lei entregue com a assinatura dos três).

Embora os tentáculos da Altice sejam largos e longos, não conseguiram então impedir uma decisão inequívoca, clara, contundente e esmagadora. A simbólica vitória dos trabalhadores, conhecida na sentença do processo em Penafiel que saiu por estes dias, é altamente desfavorável à Altice. Contra a sua vontade, a empresa é agora obrigada a reintegrar os trabalhadores, mantendo-lhes todos os direitos e regalias, postos de trabalho e categorias profissionais. É um sinal: mudem de estratégia. Sim, se trabalham tanto para a imagem, mudem.

Só que não parece ser isso que está a acontecer. O “Programa Pessoa”, anunciado a 16 de janeiro com a pompa e circunstância habitual, pode ser muito interessante para muitos trabalhadores que reúnam as condições de acesso? Sim, pode. Pode ser uma oportunidade única para se reformarem mais cedo, sim. Quanto à legalidade, o mesmo de sempre.

A obrigação legal de “consulta à Comissão de Trabalhadores (CT) antes de praticar atos de que resulte ou possa resultar, de modo substancial, a diminuição do número de trabalhadores” cumpriu-se nos limites do protocolo e dos serviços mínimos, basicamente três horas antes de ser tornado público (e com membros da CT, como foi o meu caso, impedidos de participar em duas reuniões marcadas pela Gestão sobre esta matéria...). Podem as negociações ter ocorrido sem a Comissão de Trabalhadores mas com as cúpulas dos sindicatos, por distração da direção de Gestão de Recursos Humanos da empresa? Sim, modelos iguais existem noutras empresas, em que os dirigentes dos trabalhadores acumulam funções e incorrem em permanentes conflitos de interesses. É um problema que a limitação de mandatos e a não acumulação de funções ajudaria a resolver. Mas adiante.

O que diferencia a empresa da concorrência? 
Agora que é conhecida a vontade da Altice, em “despachar” os trabalhadores que nunca assumiu não desejar — nas noticias online encontramos referência à vontade de libertar até 2000 pessoas — há que fazer contas depois de muitos terem abandonado a empresa. O número de trabalhadores tem caído a pique (quando em meados de 2015 a PT foi vendida eram 10 mil funcionários, agora já menos de 8000) fruto de uma muito agressiva forma de estar, de assédio moral permanente e uma postura que fez muitos bater com a porta. Quase que aposto que até ao final do ano de 2020 se chegará à cifra de 5000 trabalhadores — uma redução de 50% em 5 anos, aproximadamente. Onde fica a sustentabilidade da empresa, a entrega de serviço de excelência, a resposta pronta ao cliente, a solução imediata, a satisfação plena da garantia do que foi contratado? O que vai diferenciar esta empresa da concorrência?

Quem vive esta situação de perto e por dentro fica com a noção clara que o “Pessoa” foi pouco amadurecido e que se gere à medida que vão aparecendo candidatos. Com avanços e recuos, as expectativas foram mitigadas e defraudadas. Como se galvanizam recursos humanos prontos para sair, obrigando-os a um esforço extra de motivação, forçando-os a atravessar o deserto da ansiedade quando isso não seria necessário se as expectativas não fossem tão elevadas? Psicologia colectiva ou terapia de choque?

O presidente da empresa, numa comunicação interna, reconheceu isso mesmo, nesse jeito habitual de nunca assumir o erro, pedindo resiliência e criatividade. Eufemismos? Este “Pessoa” servirá, também, para a gestão de Recursos Humanos fazer um exercício de autocrítica e arrepiar caminho: ter 65% das pessoas elegíveis a colocar a mão no ar para arrumar a secretária é um sinal demasiado evidente. Se alargassem o leque até aos 40 anos e tivessem 85% das pessoas com vontade de sair mesmo perdendo dinheiro, iriam continuar a dizer que “as condições deste programa eram muito positivas para os colaboradores, confirmando a aposta da empresa nos trabalhadores e o compromisso com a gestão responsável de recursos humanos”?

Aqui chegados, ficam todas as dúvidas que continuam sem respostas à altura: quanto vai custar esta megaoperação e quem paga? Sabemos da enorme dívida do grupo Altice e projetar pagamentos a 16 anos é assustador, se sem garantias; como, quando, por quanto e também em que termos será feito o rejuvenescimento dos quadros da empresa? Neste momento, nenhuma explicação. Só comunicação. Como decisão de gestão, é surpreendente que um modelo que foi duramente criticado no passado seja o adoptado para "escoar" trabalhadores. O que mudou?

Enfim, “isto”, que já foi um porta-aviões, está a caminho de se tornar num “hiper-mega-nano” barco a remos. Cheio de cromados e assentos em napa, com muito efeito tuning. Tenho a certeza que existe uma expressão em francês para isto…mas não me ocorre.

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