Salário Mínimo: dois pesos e duas medidas

Com a benevolência de alguns e o silêncio de outros tantos, a desigualdade social cresce e declaram-se dois pesos e duas medidas, criando uma injustiça salarial sem precedentes na história da nossa democracia.

O Salário Mínimo Nacional (SMN) é o valor mínimo legal que uma entidade patronal tem de pagar aos seus trabalhadores em contrapartida do seu trabalho na produção de bens ou serviços. O SMN foi sempre visto como um mecanismo para reduzir a pobreza e para procurar garantir o mínimo de dignidade aos cidadãos.

Segundo dados de 2018 do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, 757,2 mil pessoas recebem o SMN. Este número reflete no seu universo os funcionários públicos e privados.

No passado dia 21 de fevereiro, o decreto-lei que atualiza de 580 euros para 635,07 euros o salário mínimo pago na função pública entrou em vigor. É uma boa notícia, pois os que menos ganham têm de ver os seus rendimentos melhorados e, nesse sentido, aparentemente, assim será.

Mas, na verdade, o que acontece é que entrou em vigor uma das mais discriminatórias leis da democracia portuguesa que estimula, aumenta e promove a clivagem e diferenciação entre trabalhadores do setor público e do setor privado.

A diferenciação salarial não é de todo negativa quando permite elevar os valores das remunerações no limite mínimo. No entanto, deve ser feita com base em critérios objetivos, como por exemplo o risco da atividade ou níveis de produção. O que não pode é existir diferenciação com base em critérios subjetivos, inexplicáveis e que só promovem a desigualdade.

Esta nova medida é uma subida da remuneração base para 635,07 euros, exclusivamente para a administração pública. Isto faz com que a administração pública deixe de ter uma remuneração mínima equivalente ao valor do SMN, que é hoje de 600 euros.

Convém recordar que a estrita e legal responsabilidade de determinar o SMN é do Governo e esta deve ser uma matéria discutida com os parceiros sociais, em sede de Concertação Social, encontrado um acordo entre os representantes dos trabalhadores e dos empregadores que promova a igualdade. O Governo falhou e emendou o erro cometendo um ainda maior.

Esta nova medida irá abranger cerca de 70 mil trabalhadores do setor público e passa a descriminar, de forma grosseira, cerca de 700 mil trabalhadores do setor privado.

O Governo, de forma unilateral, determinou que em Portugal há trabalhadores de primeira e trabalhadores de segunda. Uns, os trabalhadores da administração pública, recebem 635 euros e outros, no setor privado, recebem 600 euros.

Não é aceitável, numa democracia consolidada, que cerca de 700 mil funcionários do setor privado possam ser discriminados pelo seu próprio Governo, mais uma vez. Sim, mais uma vez, pois não podemos esquecer que os trabalhadores do setor publico só trabalham 35 horas enquanto os do privado trabalham 40 horas semanais.

Isto faz com que a diferença salarial entre trabalhadores do setor público e privado, avaliando numa mesma base do horário de trabalho, seja de cerca de 126 euros mensais e não os supostos 35 euros.

Os 70 mil funcionários públicos, com toda a certeza, merecem ganhar 635 euros ou até mais. O que não podemos é aceitar que cerca de 700 mil portugueses (dez vezes mais) não tenham acesso ao mesmo direito, só porque trabalham no setor privado.

Esta é uma clivagem que poderá ser insanável e a responsabilidade é exclusivamente do Governo e dos partidos que o suportam. Os ditos defensores das classes trabalhadoras, Bloco de Esquerda e Partido Comunista, nesta matéria chave, assobiaram para o lado e carpiram desajeitadas lágrimas de crocodilo, colocando-se, mais uma vez, ao lado do Governo.

Com a benevolência de alguns e o silêncio de outros tantos, a desigualdade social cresce e declaram-se dois pesos e duas medidas, criando uma injustiça salarial sem precedentes na história da nossa democracia. Promove-se, por decreto, injustiças no seio do grupo de trabalhadores que, por natureza, são já os mais injustiçados socialmente e os mais fragilizados no mercado de trabalho.

A desigualdade social é um monstro que se alimenta do alheamento e da inocência dos povos. Não deixemos então que, em Portugal, desigualdades graves se alimentem por conta do nosso alheamento, da nossa cumplicidade e, acima de tudo, do nosso silêncio.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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