Uma sopa cantada e festiva

O espectáculo do Capitólio teve o mérito de mostrar em Lisboa as virtudes de um disco cuja reedição se saúda (Ao Longe Já Se Ouvia) e a força e arte vocais das Sopa de Pedra, cujo promissor trabalho merece toda a atenção.

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As Sopa de Pedra no Capitólio CECILE LOPES
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José Salgueiro, a "voz" das percussões em palco CECILE LOPES
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Com Amélia Muge CECILE LOPES
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Com Lula Pena CECILE LOPES
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Com o Cramol e restantes convidados: José Salgueiro, Amélia Muge, Daniel Pereira Cristo, Lula Pena e José Manuel David CECILE LOPES
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Os agradecimentos finais, com o grupo e todos os convidados em palco CECILE LOPES

A anunciada “festa” das Sopa de Pedra em Lisboa correu a contento e teve sala cheia: um Capitólio de lotação esgotada abraçou o convite e acolheu a visita do grupo portuense, naquela que foi a primeira apresentação em sala lisboeta do disco de estreia Ao Longe Já Se Ouvia, lançado em 2017, esgotado no espaço de um ano e agora reeditado, na original caixa de madeira que o envolve. Das dez vozes do grupo estiveram oito, o que não é propriamente uma “estreia” – o grupo reformula-se consoante as possibilidades de cada uma. Mas o som, esse, é o do conjunto e elas conseguem habilmente preservá-lo.

Com o habitual som do canto de pássaros, a dar “voz” às cinco aves-móbile articuladas que pendiam do tecto (e que elas puseram a bater as asas várias vezes), as Sopa de Pedra iniciaram o espectáculo tal como abrem o disco: com Ró da Graça, a vozes e tambor – o de José Salgueiro, percussionista, desde o início presente no palco e anunciado como um dos convidados do concerto. Manteve-se o impacto, alegre e dançante, deste tema efusivo que há anos as acompanha.

Vieram depois dois temas do repertório de José Afonso, Adeus ó serra da Lapa e Ó minha amora madura, o primeiro de sua autoria e o segundo (um tradicional alentejano) moldado por ele, ao gravá-lo em 1972. Em ambos, as Sopa de Pedra seguiram as versões feitas para o disco e que assentam na diversidade tonal das vozes do grupo, nas harmonias e nos contrapontos, dando outras colorações à música.

A Cantiga de la segada, tema popular de Trás-os-Montes, na imponente voz de José Manuel David (ex-Gaiteiros de Lisboa e outro dos convidados), emparceirou de forma extraordinariamente harmónica com a versão e as vozes das Sopa de Pedra, naquele que foi um dos momentos superlativos da noite. O silêncio atento da audiência só se quebrou no final, com fortes e merecidíssimos aplausos. E como uma “cantiga” nunca vem só, seguiu-se-lhe a Cantiga da ceifa, que o grupo ouviu pela primeira vez na voz de Ti Chitas (Catarina Chitas, 1913-2003, pastora e cantora de Penha Garcia e referência na música de tradição popular), dele fazendo, e gravando, uma versão muito ao seu jeito.

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José Manuel David entre as Sopa de Pedra CECILE LOPES

Depois, foi a vez de Amélia Muge, cantora e compositora que segue o trabalho do grupo desde o início (e até antes, quando algumas das vozes que o compõem integravam o Bando dos Gambozinos). Entrou em cena para cantar com elas dois temas de sua autoria: À nave, de que o grupo fez uma versão que registou no disco; e Pé de sopa, tema inédito ali estreado, que Amélia entendeu dar-lhes como prenda. Num e noutro caso, foi muito boa a harmonização das vozes, dos tempos e dos ritmos, combinando da melhor forma a qualidade e capacidade das intervenientes. Pé de sopa, um achado (embora soando a acto de pedir, “pede sopa”, remete sobretudo para a raiz de tais cantos, o “pé de” bem claro no título), impôs-se como canção a merecer registo fonográfico futuro que a perpetue.

Ainda com Amélia em palco, vieram as muitas vozes do Cramol juntar-se às Sopa de Pedra para cantarem juntas Cantiga sem maneiras, do GAC, aqui ampliada de uma voz (era assim, no original) para um crescendo de vozes que confere também um crescendo dramático ao discurso desassombrado e firme de canção. Ainda do GAC, Olha o sol a pôr, este só com as vozes das Sopa de Pedra amparadas no bater ritmado de dois adufes. Com novo convidado, Daniel Pereira Cristo, em cavaquinho e voz, ouviu-se depois a açoriana Sol baixinho, numa fusão (conseguida) das versões de ambos.

Maçadeiras do meu linho, em boa forma e de ágil expressividade, interrompeu o ciclo açoriano, que prosseguiria com Os bravos e a última convidada da noite a surgir em palco: Lula Pena. À versão de tons misteriosos e laivos fadistas que esta registou no Acto V do seu disco Troubadour (2010) juntou-se a versão a várias vozes que do mesmo tema fizeram as Sopa de Pedra, acelerando os tempos numa alegoria festiva e exuberante. Sendo um “casamento” inusitado, funcionou quer na mistura quer no contraste, ficando do esperado confronto entre as duas abordagens uma interessante simbiose de géneros.

Por fim, mais um tema do disco agora reeditado, Bate bate (escrito por Amélia Muge), a anteceder um final com a totalidade dos participantes em palco e uma melodia repetida ao compasso das palmas da plateia. O encore, de novo com toda a gente em palco, fez ouvir um tema novo, composto por Teresa Campos e Sara Yasmine (uma das vozes ausentes mas, disse Teresa, por “boas razões”, familiares) e que foi sendo cantado repetidamente, como um mantra, até quase todos os presentes o saberem de cor: Fonte pura.

Gerido de outra forma, podia ter aproveitado os vários naipes de vozes para evoluir num clímax, envolvendo a assistência em crescendo, mas assim deixou apenas uma sensação penosa de arrastamento. Que, misturada a uma certa displicência que já marcara as apresentações, acentuou ainda mais o lado de “encontro de amigos” em detrimento de uma noção de espectáculo.

O que foi pena, porque o concerto-festa das Sopa de Pedra, não tendo o impacto do espectáculo colectivo De Viva Voz (onde também pontuaram, e bem, em Novembro de 2016, no Tivoli), teve o mérito de mostrar em Lisboa as virtudes de um disco cuja reedição se saúda (Ao Longe Já Se Ouvia) e a força e arte vocais das Sopa de Pedra, cujo promissor trabalho continuará a merecer toda a atenção.

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