Trocar âncoras pela espuma dos dias

O BE decidiu ultrapassar tudo e todos – até a si mesmo – ao bramir a exigência da demissão de Carlos Costa antes mesmo da comissão parlamentar que aquele partido originou começar a trabalhar e apresentar resultados

Fazendo jus ao estilo estridente que tem caracterizado a actuação do BE, Mariana Mortágua exigiu a demissão de Carlos Costa da presidência do Banco de Portugal, depois de ter sido divulgado que ele, enquanto administrador da Caixa Geral de Depósitos (2004-2006), terá sido conivente com uma política de concessão de créditos eventualmente questionáveis do ponto de vista ético, segundo o resultado de uma auditoria.

Mais uma vez, o BE procura marcar a agenda política com exigências que vão além do que é defendido pelos outros partidos. Fá-lo-á certamente por convicção, mas também por estratégia de comunicação, como forma de marcar a agenda mediática e ser notícia. Na persecução desse objectivo, muitas vezes esquece não só a coerência como o bom senso político. Neste caso, o desvario do BE prende-se com o facto de este partido integrar uma comissão parlamentar de inquérito à gestão e à concessão de créditos pela CGD desde 2000. Aliás, o BE foi autor do pedido de inquérito, em conjunto com o CDS e o PS, um requerimento que só não teve apoio parlamentar do PCP.

O BE decidiu ultrapassar tudo e todos – até a si mesmo – ao bramir a exigência da demissão de Carlos Costa antes mesmo da comissão parlamentar que aquele partido originou começar a trabalhar e apresentar resultados. Espera-se, aliás, que, desta vez, os deputados saibam e queiram aferir responsabilidades reais na CGD não só ao nível da legalidade da gestão, mas também sobre os desvios dos gestores em relação à ética de Estado, já que esta não se reduz aos crimes previstos nas leis, como muitas vezes vários políticos têm defendido, dando lastro a uma cultura de compadrio com comportamentos ilícitos e ao arrepio da defesa do interesse público.

Este tipo de incoerência, esta quase obsessiva necessidade de surfar a onda da espuma dos dias, é apresentada por um conjunto de 26 militantes do BE, alguns dos quais fundadores do partido, para rasgarem o seu cartão. Entre os nomes que subscrevem o documento político em que justificam a sua saída do BE, saliento Sérgio Vitorino e João Carlos Louçã. Como jornalista, conheço o seu trabalho político e cívico e tenho profundo respeito pela sua capacidade, pela coragem e frontalidade com que defendem e lutam por aquilo em que acreditam, pela discrição e ausência de vaidade com que conduzem o seu activismo e também pela absoluta coerência entre o que pensam e dizem e o modo como agem no seu dia-a-dia, tendo mesmo sofrido na sua qualidade de vida as consequências reais das suas posições públicas.

Sérgio Vitorino e João Carlos Louçã ficaram conhecidos em 1992, enquanto protagonistas de uma acção directa à porta do CCB contra Couto dos Santos, ministro da Educação de Cavaco Silva, que tinha aprovado no Parlamento a Lei das Propinas. O impacto público do episódio de contestação levou à substituição de Couto dos Santos por Manuela Ferreira Leite. Sérgio Vitorino e João Carlos Louçã foram dois dos quatro estudantes que, às cavalitas de colegas, baixaram as calças para, escritas nos rabos nus, mostrarem as letras que compunham a expressão “Não pago”, a qual era complementar da palavra de ordem de luta dos estudantes que se manifestavam: “Não pagamos”. Um momento que levou o então director do PÚBLICO, Vicente Jorge Silva, a escrever um editorial intitulado “Geração Rasca”, o que provocou que os estudantes em luta se auto-intitulassem “Geração à Rasca”.

Como militantes do PSR, Sérgio Vitorino e João Carlos Louçã foram fundadores do núcleo homossexual deste partido. Estiveram também na fundação das Panteras Rosas, uma organização independente pioneira na forma como defendeu os direitos dos gays e das lésbicas em Portugal, mas também dos transexuais. Foi Sérgio Vitorino o responsável por levar a necessidade do reconhecimento do direito à mudança de sexo à Assembleia da República, nomeadamente trazendo a Portugal activistas transexuais espanhóis e conseguindo que fossem recebidos em audiência por alguns grupos parlamentares.

Na carta de despedida do BE, os 26 militantes consideram que “o tacticismo de decisões, o jogo da comunicação na sua forma burguesa, a ausência de qualquer activismo local inserido numa estratégia de construção do partido, a progressiva ausência de pensamento crítico acompanhada pela hostilização da divergência interna e profundo sectarismo com outras forças de esquerda transformaram o BE num projecto reformista centrado na sua própria sobrevivência”.

O diagnóstico ajuda a explicar o que leva o BE a comportamentos incoerentes, como o assumido em relação à CGD. Na linguagem revolucionária que os caracteriza, os 26 militantes chamam-lhe uma cedência ao “jogo da comunicação na sua forma burguesa”. Não caracterizo a questão nos mesmos termos. Mas é um facto que o BE cedeu a uma lógica de comunicação mediática, em que o ser notícia a qualquer preço parece imperar. E acabou por trocar âncoras pela espuma dos dias.

Sugerir correcção
Comentar