Agnès Varda (outra vez) nas suas praias

Com Varda par Agnès, eis Agnès de regresso à sua vida e ao seu cinema – mas sempre como se fosse a primeira vez. O mesmo já não se pode dizer do reencontro entre Catherine Deneuve e André Téchiné.

Fotogaleria

“Inspiração, criação, partilha”. São os três “motes” com que Agnès Varda se dirige ao espectador nos primeiros momentos de Varda par Agnès (Selecção Oficial fora de competição), depois de um longo genérico “à antiga” que coloca todos os créditos do filme à cabeça. Varda está sentada em palco, num teatro, começamos por vê-la de costas na sua cadeira de realizadora, para a câmara se colocar em seguida na plateia. (“O medo de todos os cineastas,” dirá mais tarde, “é uma sala vazia, é ninguém ver os seus filmes”.)

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

“Inspiração, criação, partilha”. São os três “motes” com que Agnès Varda se dirige ao espectador nos primeiros momentos de Varda par Agnès (Selecção Oficial fora de competição), depois de um longo genérico “à antiga” que coloca todos os créditos do filme à cabeça. Varda está sentada em palco, num teatro, começamos por vê-la de costas na sua cadeira de realizadora, para a câmara se colocar em seguida na plateia. (“O medo de todos os cineastas,” dirá mais tarde, “é uma sala vazia, é ninguém ver os seus filmes”.)

A plateia está, no entanto, cheia, e é uma das plateias que Varda seduz e namora ao longo destas duas horas: a plateia do Berlinale Palast nesta manhã de quarta-feira (estreia mundial), mas também a plateia de cadeiras vazias de que ela tem medo; a de pássaros (falsos) e crianças (verdadeiras) numa das praias da "casa longe de casa" que é Noirmoutier; a das exposições que foi fazendo ao longo dos últimos anos em que brincou com a lógica de artista visual (“que é uma palavra muito mais bonita do que a francesa plasticienne, parece que estamos a fazer coisas de plástico...”).

É, em suma, Varda como sempre a conhecemos, mais viva aos 90 anos do que cineastas com menos de metade da sua idade (basta virar-nos para qualquer lado nesta Berlinale 2019 para encontrar pelo menos meia-dúzia de exemplos…), inspiradora, criadora, partilhadora, “respigando” setenta anos de cinema daquela maneira coloquial e quase labiríntica que se tornou seu apanágio desde que abandonou a ficção após o fracasso de Les cent e une nuits de Simon Cinéma (1995) e que as câmaras digitais lhe permitiram fazer filmes mais próximos das (e mais fáceis de partilhar com as) pessoas.

Contudo: ainda seria possível a Varda, dez anos depois de As Praias de Agnès (2008), voltar a olhar para si e para a sua carreira sem correr o risco de estar a repetir-se? Varda par Agnès prova que sim: prova que as muitas vidas de Agnès, fotógrafa, cineasta, cúmplice, documentarista, improvisadora, inventora, descobridora, foram sempre uma só e inesgotável vida, em busca da tal inspiração, da tal criação, da tal partilha — “escolher mostrar os outros, mais do que escolher mostrar-me a mim”, como diz no filme, e sempre sempre procurando transmitir, comunicar, fazer sentir.

Foto
Agnès Varda e o director do festival Dieter Kosslick EPA/ADAM BERRY

Fala-se de Demy, claro (Jacquot de Nantes como o filme não do adeus, mas do “acompanhamento de Jacques enquanto morria”); fala-se também do seu combate feminista, da sua cumplicidade com Jane Birkin, da experiência de rodar com Sandrine Bonnaire, da sua estadia em Los Angeles. Tudo com a seriedade lúdica de quem tem gozo no que faz e que não faz nada em que não tenha prazer. Mesmo que o prazer não tenha sempre sido retribuído pelos espectadores, Varda par Agnès é uma carta de amor ao espectador. E o espectador não pode senão dizer-lhe: obrigado, Agnès.

Gostávamos, sinceramente, de poder dizer obrigado a André Téchiné; a última vez que o encontrámos em Berlim foi com o seu melhor filme recente, Quando se Tem 17 Anos. E a presença de Catherine Deneuve no elenco do novo L’adieu à la nuit (Selecção Oficial fora de competição) podia levantar esperanças – afinal, Deneuve é a grande musa do realizador de O Segredo do Amor e Os Juncos Silvestres, uma daquelas parcerias que inspiram clássicos (Schneider e Sautet, Karina e Godard, Léaud e Truffaut). Mas, ao que parece, Quando Se Tem 17 Anos foi fogacho que não se repete: apesar de alguns bons momentos, L’adieu à la nuit é outra vez um Téchiné muito menor, tocando sem grande convicção nem inspiração num tema quente (aqui, o terrorismo islâmico).

Foto

A Deneuve é uma viúva que gere um centro de equitação no sudoeste rural, e que descobre que o seu neto (Kacey Mottet Klein, que regressa do anterior filme), que lhe veio fazer uma visita de despedida antes de emigrar para o Canadá, se converteu ao islamismo e vai na verdade ser guerrilheiro na Síria. Reconhecemos os temas todos habituais de Téchiné, a sua atenção aos actores e às temperaturas emocionais das personagens até alguma elegância na encenação; mas fica a sensação de um filme preso a meio caminho entre o tema e a sua recusa, sem conseguir escapar ao limbo de uma mediania benfazeja mas desinspirada, de um cineasta que envelheceu menos bem do que gostaríamos.