“Vivo enquanto me recordo”

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Ela entra em "As Praias de Agnès" a caminhar de marcha-atrás em direcção aos lugares e às pessoas da vida dela. Aos 81 anos, Agnès Varda vive na memória - mas sem nostalgia, como uma respigadora, a apanhar o que lhe traz o vento. Este filme, explica-nos nesta entrevista em que também entra de marcha-atrás, é o seu "auto-retrato escondido". Varda a olhar o mundo (e a olhar para ela) de olhos nos olhos, enquanto não perde a visão.

No fim da conversa, Agnès Varda diz-nos que está a perder a visão. É um golpe - porque é dito sem drama, de forma casual. E porque ao longo da conversa olhou, inspeccionou, brincou com os olhos, desafiou, transformando aquilo a que, à falta de melhor, temos de chamar “entrevista”, numa experiência - como a do filme, “As Praias de Agnès” - em que a memória é coisa “ao vivo”, do presente.

É assim esta senhora redonda de 81 anos, tagarela - descreve-se assim -, com cabelo de duas cores, branco no meio, coroa escura à volta. É a versão “punk” de uma octogenária (diz que não gosta de cabelos brancos, mas detestaria escondê-los, por isso jogou dessa forma). Vejam só: faz a sua entrada no filme a caminhar de marcha-atrás. Mas regressa ao passado sem tirar os olhos do espectador de hoje - fazendo com que ele não tire os olhos dela. E depois - agora não estamos a falar só do filme, estamos a falar desta “entrevista”, em que uma pergunta é apenas um mecanismo que lança a fotógrafa, cineasta, artista, no fluxo imparável de um “recordo, logo vivo”, e nos arrasta com ela -, são as praias, o sítio mais belo que conhece... começamos nas praias da Bélgica, onde nasceu Arlette, que mais tarde mudou o nome para Agnès, e chegamos às praias de Los Angeles, Venice Beach, Califórnia.

E temos a “nouvelle vague”, Godard, Jacques Demy (o seu amor) e “Cléo de 5 a 7”, o seu filme. E as manifestações feministas e as fotografias que tirou em Cuba 1962, “socialismo e cha-cha-cha”, como ela diz (Fidel Castro era “um grande utopista com olhos de pedra"). E a América - “Los Angeles é a América”, não há outra cidade - com Demy, o seu amor, e a experiência de conhecer os Black Panthers, Jim Morrison, os hippies e filmar Viva, a estrela de Warhol, com os autores de Hair em “Lions Love"; e filmar os “graffiti” de Hollywood para o documentário “Murmurs”.
E Jacques Demy, que um dia morreu de sida.
E um carpinteiro chamado Harrison Ford, que esteve para entrar num filme de Demy, “Lola”, com Anouk Aimée, mas os americanos não acharam que Harrison tinha futuro.

"Home movie” em forma de colagem, “As Praias de Agnès” mete ao barulho objectos que cristalizam memórias, como faz um artesão surrealista e feliz, ou segue despreocupadamente a via do documentário e filma o que acontece - como naquele momento, numa exposição de fotografias em Avignon, em que Varda desaba emocionalmente porque se dá conta de que aqueles que fotografou ao longo da vida (Gérard Philipe fotografado sob o sol do meio dia para parecer que tinha sido fotografado ao luar...) estão todos mortos.

Enquanto recorda, ela vive. É isso Agnès.

No genérico inicial de “As Praias de Agnès” utiliza os espelhos de forma a que o espectador até tem a sensação de que se pode ver reflectido no ecrã. Mas nunca se vê Agnès Varda reflectida. O que é curioso tratando-se, como se trata, de um auto-retrato. É a indicação de um programa para o filme?

Havia vento quando rodávamos esses planos, eu tinha uns lenços, e houve um momento que disse para comigo: “É o meu retrato escondido”, escondido atrás de lenços e dos espelhos. Porque é um espelho invertido. O utensílio do auto-retrato é o espelho. Os pintores pintavam-se ao espelho. Eu tentei fazer o contrário: que o espelho reflectisse outras pessoas, as ondas, o mar, a realidade. Que houvesse uma espécie de confusão entre a imagem reflectida e a imagem refractada, em todos os sentidos. E tive vontade de filmar os outros, como aqueles estudantes de uma escola belga que foram muito gentis em ajudar-nos a levar os adereços para a praia - quis mostrar cada um deles, quis que eles se apresentassem, quis apresentá-los, Céline, Emilien, Marjolaine, Sarah...
Sim, penso que a primeira cena dá a chave de leitura do filme. Há um momento em que se vê o mar, e aproximamos um espelho, que balança. O mar está calmo, mas no espelho ele parece agitado: é tão-somente o ponto de vista.
Depois houve o acaso, como quando recriámos uma praia numa rua de Paris. Às tantas a chefe decoradora disse: “Queres que ponha uns pássaros em cartão?” E eu respondi: “Se quiseres.” O filme está entre o acaso e situações que foi preciso aproveitar.
Por exemplo, naquela sequência em que vou à minha casa de infância [em Bruxelas, onde nasceu], subo as escadas e digo [ao novo proprietário] que quero ver o meu quarto e o quarto das minhas irmãs. E ele diz-me: “Olhe para a minha colecção de comboios.” Compreende: tendo eu feito uma série de documentários, essa era uma ocasião que eu não podia perder. E do ponto de vista do espectador, era muito mais divertida a história dos comboios do que saber onde era o meu quarto. Ou seja, é o acaso, mas convoco-o: há um projecto, visitar a casa, com o jardim, muito importante para mim, e depois é o tipo que me rouba, que me rouba a lembrança. Mas é isso que para mim é interessante. É essa a minha ideia de auto-retrato: qualquer coisa permanentemente a ser perturbada.

É claro que apareço no filme, mas tentei falar sempre de outras coisas. Falo da “nouvelle vague”, porque talvez interesse às pessoas, faço perguntas a que tento responder. Mas há um desejo de colocar em cena outras pessoas. Não só Harrison Ford...

Mistura momentos de documentário com a recriação de episódios que estão na sua memória. A sensação, aí, é que está a viver outra vez esses momentos, a experimentar outra vez o que já viveu... A pergunta é: essa forma de fazer, esse jogo com a recriação, serviu-lhe para mergulhar fundo nas emoções ou para se defender delas?

As duas coisas. Há um momento em que digo: “Je me souviens pendant que je vis”, [recordo-me enquanto vivo]. Poderia dizer, e seria a mesma coisa, “vivo enquanto me recordo”. Eu vivo na memória. Não há nostalgia. Há aquilo que a minha memória deixa sair naquele instante em que estou a filmar. Se filmasse não naquela altura mas seis meses depois, certamente o filme teria outras coisas. Queria que as coisas fossem orgânicas.
Claro que controlei, montei, evidentemente.
Por exemplo, Los Angeles: adoro aquele casal na praia. Na América pode-se casar onde se quiser. Há ali a nostalgia de um casal, coisa que acontece quando se tem desejo do par ou quando se perdeu o par. A nostalgia do casal existe, existe de forma discreta. É uma grande aventura, o casal, é difícil, acaba, recomeça, mas é em si uma aventura. Para mim foi uma grande aventura da minha vida. Com acidentes, mas uma grande aventura. Descobri esse casal que se conhece há mais de 40 anos, que se conheceu na praia, fui eu que os filmei, como um modelo. São imagens que me falam. E eu não tinha previsto filmar esse casal, não tinha previsto filmar em Los Angeles.

É preciso ter um ideia de cinema, estar alerta para as surpresas. Com aquela ideia de andar para trás. Mas olho sempre para a câmara. É ambíguo. Eu recuo, como se me divertisse a andar para trás, mas não paro de olhar para a câmara. Podia apenas partir, de costas para o espectador. Mas não. Porque a minha ideia é olhar o espectador e que o espectador me olhe. É uma troca de olhares.

E havia coisas que eu queria mostrar. Por exemplo, que os livros de arte na época eram a preto e branco. Imagina ver Van Goghs ou Ticianos a preto e banco? Era preciso ir aos museus para os ver a cores. Coisas assim que as pessoas hoje não conseguem imaginar. Que, por exemplo, na altura da guerra não se dizia nada, não se lia nada... eu não me dei conta que havia uma questão com os judeus. A nosso lado moravam umas raparigas que tiveram de ser levadas para a Suíça. Eu não cheguei a saber quem elas eram. Não se dizia nada, não tínhamos rádio, não havia jornais nem televisão. E a minha mãe, que se ocupava a dar-nos de comer, talvez soubesse coisas mas nunca nos disse nada. Brinquei muito durante a guerra, e enquanto isso homens iam para a guerra e levavam-se pessoas para os campos de concentração. É essa “décalage” na História que queria contar. Nunca fiz filmes de violência nem filmes de guerra. Não servem para nada. Não é por se fazer um filme de guerra que se impede a guerra. Mesmo se as pessoas gostam muito de filmar a guerra.

Quando me reencontrei com Jacques, e estabelecemos o projecto de envelhecermos juntos, começámos a ir muito mais aos museus do que antes. Quis mostrar isso, era preciso mostrar as reproduções nos catálogos, filmar as pinturas... fomos ao museu de Amesterdão ver um Vermeer que apaixonava Jacques - ele quis mesmo a certa altura fazer um filme. As pessoas não são obrigadas a saber isso, mas um filme é alimentado também de emoções pessoais. Ou quando abro a rádio e está a tocar Bach, que Jacques amava. Eu alimento-me dessas emoções, que não sou obrigada a explicitar, mas as pessoas, acho, sentem que há um pequeno fluxo emotivo contínuo. E há ao mesmo tempo uma vontade de me divertir, de fazer de palhaço, de me disfarçar. Gosto muito disso.

A pergunta sobre o mergulho nas emoções, ou a defesa em relação a elas, vem, é claro, por causa daquela sequência em Avignon, onde monta uma exposição de fotos de pessoas que lhe são queridas e “descobre” que estão todos mortos, são os seus mortos. Aí desaba emocionalmente...

A emoção apanha-me ainda. Fiz belas fotos, pediram-me em 2007 para as expor no festival de Avignon. A exposição era magnífica, pode-se perceber que era. Estou muito orgulhosa. E de repente, a emoção apanhou-me. Disse a mim mesma: “Estou rodeada de mortos.” Um deles era o mais querido dos mortos, Jacques Demy. O campeão dos mortos para mim. Ora, se eu não tivesse sentido essa emoção naquele momento, o filme teria sido diferente, a montagem teria sido diferente, porque tudo se passou a concentrar sobre Jacques. Para a montagem havia coisas preparadas, mas nunca faltou espaço para o fugidio, para uma emoção furtiva. Para uma rabanada de vento.

É um filme puzzle. E faltam peças. É uma obra inacabada. Sabe, nos puzzles há sempre a caixa com o desenho e as pessoas podem copiar o desenho. Mas o verdadeiro desafio para os puros e duros do puzzle é que não se veja sequer o desenho. Procura-se o que se vai encontrar. É isso o filme: um puzzle de que não temos o modelo, porque o modelo constrói-se enquanto se faz o filme, com a montagem. No início é como se faltassem peças, e quanto ao fim não sabemos se o desenho é uma paisagem ou é uma figura humana... nem eu mesma sei, porque a paisagem da praia é dominante na minha cabeça como a referência, como a mais bela paisagem do mundo. Como a referência absoluta. O céu, o mar, a praia, não há mais nada assim no universo. E a beleza de ter um horizonte que é sempre horizontal. 

Foi preciso depois encontrar elos entre as peças desse puzzle, uma pequena emoção, como uma pequena peça de música que foi feita para Jacques e para mim, sabe, da da da di, da, da da di... queria que se ouvisse só este tema quando se visse o Jacques, achei isso muito bonito, uma pequena frase musical sem excesso de violinos. Muito trabalho para a justeza. Quando se canta, não se deve cantar ao lado ou demasiado forte. Deve-se cantar de forma justa. Foi esse o meu trabalho: encontrar a justeza de tom, de montagem, e um pouco de brincadeira.

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