As algemas de Armando Vara

Nós já vimos dezenas, centenas de imagens de gente algemada a chegar a um tribunal – porque é que só nos indignamos com Armando Vara?

Hoje em dia, as pessoas bem formadas têm os sentidos muito apurados para variadíssimas formas de discriminação. Os adeptos mais fervorosos do feminismo vigiam cadernos de actividades para meninos e meninas. Os combatentes mais empenhados contra o racismo histórico vigiam estátuas opressoras. Os activistas mais radicalizados do grupo LGBTQQIA+ vigiam o uso de pronomes. Os apoiantes mais apaixonados dos direitos dos animais vigiam provérbios com referências a bicharada.

Confesso que, embora sendo contra o machismo, contra o racismo, contra a homofobia e contra os maus-tratos a animais, o meu palato não consegue destrinçar certas subtilezas discriminatórias. Ele consegue, contudo, captar um outro tipo de discriminação, à qual sou bastante sensível, certamente por ter nascido no interior de Portugal e continuar a cultivar lastimáveis hábitos de matarruano: o classismo, ou classicismo (os dicionários admitem as duas formulações), que pode ser definido como a discriminação baseada na classe social.

Tristemente, já foi uma discriminação popular, mas está desvalorizada nos dias que correm. É uma pena, porque eu vejo manifestações dela todos os dias – incluindo por parte das mesmas pessoas que sendo muito sensíveis ao machismo, ao racismo, à homofobia ou aos direitos dos animais, são muito pouco sensíveis às mais variadas aparições de classismo, com certeza por estar nelas tão entranhado (reparem como estou maldosamente a usar o argumento favorito de todas as minorias envolvidas em lutas pela justiça social) que nem se apercebem quando o praticam.

As algemas com que Armando Vara se apresentou em tribunal na semana passada são um bom exemplo do que estou a falar. Muita gente manifestou-se contra aquelas imagens, considerando-as uma humilhação desnecessária. E alguns nem sequer nutrem qualquer simpatia em relação a Vara – acham simplesmente que aquilo não se faz. É aqui que o meu nariz anticlassista começa a sinalizar o cheiro a esturro. Nós já vimos dezenas, centenas de imagens de gente algemada a chegar a um tribunal – porque é que só nos indignamos com Armando Vara? Não é ele um cidadão como qualquer outro?

Foto
MIGUEL A. LOPES/Lusa

Dir-se-á: a indignação advém de não existir qualquer razão plausível para suspeitar que ele vá agredir os polícias ou tentar fugir se for conduzido ao tribunal de mãos livres. Vamos deixar de lado a possibilidade de esse já ser um raciocínio preconceituoso em relação à natureza humana (Duarte Lima diz-vos alguma coisa?), e concentremo-nos no ponto mais importante: fará mais sentido ser o guarda prisional que conduz o condenado a tribunal a decidir sobre a sua perigosidade, ou fará mais sentido haver um procedimento comum, que é usado para todos os condenados, sem excepção?

O meu anticlassismo prefere indiscutivelmente a segunda opção. Também eu acho que Armando Vara não esgana guardas, mas a regra que deveria ser aplicada nestes casos é não achar coisa alguma – assim protege-se a igualdade e evitam-se os equívocos. Vara já não goza da presunção de inocência. Está condenado. E todos os presos devem ser alvo das mesmas regras nas deslocações ao exterior. Infelizmente, não vi ninguém pôr isto desta forma, nem vislumbrei qualquer preocupação com outros prisioneiros a quem acontece o mesmo. Ouvi apenas dizer: “que horror, aquilo não se faz.” Quem é como quem diz: não se faz ao senhor Vara, que andou a mexer indevidamente nuns dinheiros, mas não deixou de ser um homem civilizado por causa disso. Classismo puro e duro.

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