O renascimento dos nacionalismos europeus

A UE, como comunidade humana, não existe. Administra e gere; não convoca emoções, nem, sobretudo, suscita identificações.

Na exacta medida em que proliferam as mais variadas reivindicações identitárias, minando a unidade das nações e, consequentemente, a união dos Estados-membros da UE, assistimos à multiplicação de governos ou partidos que se reclamam da soberania nacional, em nome da qual se recusam a ajoelhar suavemente perante as “recomendações” e “directivas” de Bruxelas, ressentidas como um Diktat. (Este fenómeno também é observável à esquerda, mas por razões totalmente diversas, de que aqui não me ocupo.) A União Europeia trouxe coisas fantásticas, mas, a cada dia que passa, mais visível e audível se torna, por parte de cada vez mais europeus, a rejeição da sua regência da Europa, vista como uma usurpação.

A UE tem vivido de derramar euros. Foi este o maná que susteve a sua unidade até 2007-08. O que estamos em vias de constatar é que, restringida esta prodigalidade, muito pouco sobra para sustentar uma União que se quer laica e pretende subsistir como uma Casa Comum sem alicerces culturais nem contrafortes religiosos. A UE é um edifício puramente racional, feito a regra e esquadro, ponto. Não chega para ser uma “Pátria” para ninguém. Nenhuma comunidade humana prescinde de uma qualquer Transcendência que cimente a sua coesão. A UE, como comunidade humana, não existe: é uma prosaica administração que gere tecnocraticamente vários países como se fossem várias empresas multinacionais. Administra e gere; não convoca emoções, nem, sobretudo, suscita identificações.

A Europa definia-se como “A Cristandade”, que olhava para Roma como a sede simbólica de uma majestade espiritual, comum e sagrada. A Reforma protestante, no século XVI, operou uma ruptura teológica (e litúrgica) no Cristianismo, mas protestantes e católicos não deixaram por isso de permanecer cristãos, e a religião continuou a funcionar como o respaldo último da necessária unidade da Europa contra a hostilidade turca otomana à qual a sua geografia a expunha. Graças ao Cristianismo, e apesar das guerras em que os Estados europeus se envolviam regularmente, os europeus sentiram-se sempre ligados por mais qualquer coisa do que o mero acaso geográfico ou do que uma soma de contabilidades: eram “A Cristandade”.

Nos princípios deste segundo milénio, para forjar (ou forçar) a coesão da Casa Comum Europeia, foi nomeada uma comissão, presidida por Giscard d’Estaing, incumbida de conceber e redigir uma “Constituição Europeia”. Os trabalhos da “Convenção para o Futuro da Europa” prolongaram-se entre 2002 e 2003. D’Estaing escreveu um longo Preâmbulo em que se atreveu a apontar o Cristianismo como uma das fundações culturais da União Europeia. Logo um jacobinismo transnacional – que não só francês – afiou a língua para vituperar semelhante blasfémia: a Europa era laica, a-religiosa, e dispensava perfeitamente uma tão humilhante remissão para o Sobrenatural quer para identificar as suas origens, quer para justificar a sua existência secular, quer para garantir o futuro grandioso com que espantaria o Mundo. O clamor do protesto levou a melhor. A alusão ao Cristianismo foi covardemente retirada da versão final da Constituição, assinada em 2004, da qual já ninguém justamente se lembra.

A Europa, já então com uma percentagem significativa de imigrantes muçulmanos, vergou a cerviz. É preciso não magoar ninguém. A única “minoria” que se pode ofender são os cristãos! 

Hoje em dia existem dentro da Europa agressivas comunidades identitárias para todos os gostos e feitios. E os poderes políticos, tanto quanto podem ou mesmo quanto não podem, a todas acarinham, respeitam e protegem. Em muitos casos, esse carinho, respeito e protecção agridem a maior parte da sociedade. Paciência. Mas... ser “europeu” não ajuda? Não, desajuda. Porque os cidadãos comuns, olhando para a UE, vêem uma manta de retalhos, para muitos exótica e ininteligível, e nada enxergam a que se agarrem para saber onde fincam os pés. Perderam a sua identidade. Muito naturalmente, voltam-se para a nação em que os seus pais nasceram, cresceram e rezaram, e com cuja história mantêm alguma espécie de relacionamento. Buscam uma “Pátria” como casa sua – uma Heimat –, um território familiar povoado por gentes com quem partilhem memórias e afinidades afectivas: Bruxelas é uma abstracção demasiado longínqua que nada lhes diz.

Voltam-se, em suma, para o nacionalismo, que protege a Pátria. Não gosto, mas é assim: a sobrevalorização das causas identitárias, quer a nível europeu quer a nível nacional, mina, corrói a coesão social, já de si ameaçada por um extremismo laicista de bafiento odor jacobino. O nacionalismo prospera nestes solos desertificados, deixados por semear.

Declaração de interesses: sou agnóstica.

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