Porto de Tradição reluz em 75 lojas, mas nem todas estão livres de perigo

Rui Moreira entregou esta semana as placas do programa de protecção a lojas históricas. Mas alguns senhorios não desistem de despejar os comerciantes. O Buraquinho vai mesmo perder a sua cave. Confeitaria Serrana, Moreira da Costa e Café Embaixador ainda tremem.

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Apesar da protecção camarária, o restaurante O Buraquinho, na Praça dos Poveiros, não deve resistir à ordem de saída Nelson Garrido

Sérgio Costa assistia à cerimónia de entrega das placas de identificação do programa Porto de Tradição e comentava com a sócia Marta Quitério como poderia ser “bonito” aquele momento, não fosse a amargura de saber que de pouco lhes valerá a classificação da Câmara do Porto. O restaurante O Buraquinho foi um dos 75 estabelecimentos agraciados na passada segunda-feira com o “selo” do projecto camarário de protecção a lojas históricas da cidade. Para os proprietários, no entanto, o auxílio parece ter chegado tarde. Apesar do apoio do executivo de Rui Moreira, vários comerciantes ainda vivem na corda bamba, enredados em batalhas judiciais ou sob pressão de senhorios que não desistem dos seus planos de despejo.

Na cave do número 33 da Praça dos Poveiros, a angústia não serenou. Segunda-feira “era suposto ser um dia feliz”. Mas para Sérgio Costa o banquete teve sabor “agridoce”: o reconhecimento é bom, mas não deverá desfazer o pesadelo de fechar portas ao fim de 92 anos de história. “O objectivo do Porto de Tradição é manter os espaços nos locais onde estão e nós vamos mesmo ter de sair.” A fragilidade advém do facto de a classificação de loja histórica ser posterior à primeira carta de comunicação de cessação do contrato enviada pelo senhorio. O Buraquinho teve fim anunciado para 2018. Contestou. No fim do ano, viu o tribunal dar razão ao proprietário. Recorreu. A probabilidade de reverter a decisão é, agora, “ínfima”, avalia Sérgio Costa. E, por isso, a busca por um novo local já começou. O PÚBLICO questionou a câmara sobre o número de processos de contestação ao seu programa e sobre quais as situações em que a protecção camarária não chega, mas não obteve resposta. 

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Na pequena cave servem-se petiscos tipicamente portugueses Nelson Garrido

Na melhor das hipóteses, Sérgio Costa conta continuar a servir os petiscos portugueses na cave de pouco mais de 30 metros quadrados até ao fim do ano. Desistir de vez não é um plano. Mas os preços das rendas têm-se anunciado incomportáveis. E a mudança de geografia pode até implicar a perda da placa da autarquia, se nessa nova morada não se incluírem alguns dos elementos decorativos característicos que têm na Praça dos Poveiros. “Se houver uma oportunidade mudamos. Mas não é possível recriar isto”, diz num timbre nostálgico: “Nunca mais vai ser um Buraquinho.”

Os turistas descobriram o número 52 da Rua do Loureiro, junto à estação de São Bento, há coisa de três anos. Nas páginas do The New York Times, a Confeitaria Serrana, nascida em 1945, levou carimbo de paragem obrigatória. Pela simpatia de Mónica Oliveira, pelas fartas bolas de Berlim, pela beleza arquitectónica ao estilo Arte Nova, o tecto pintado por Acácio Lino. Ali, a clientela habitual ainda é tratada pelo nome (e até dá uma ajuda a levantar louça da mesa se for preciso), mas mistura-se com gente chegada de todos os cantos do mundo, como atestam dois livros de honra deixados em cima do balcão, cuja última mensagem foi escrita por duas amigas da Coreia do Sul.

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Confeitaria Serrana é visitada por muitos turistas desde que foi notícia nas páginas do The New Tork Times Manuel Roberto

Mónica Oliveira herdou o negócio dos pais. Mal a altura lhe permitiu chegar à máquina de cafés, teria uns cinco anos, começou a ajudar na confeitaria. E nunca mais quis parar. Por isso, quando, inesperadamente, uma carta anunciou uma mudança de senhorio, ela inquietou-se. A par das aflições de outros comerciantes e moradores, Mónica tinha-se precavido antes disso e iniciado o processo de pedido de protecção do Porto de Tradição. Em Julho de 2018 conseguiu o certificado e adiou a ordem de saída com data de Outubro. Mas continua a ter o fim de Abril como fim de linha, nova ordem de saída.

A placa cinzenta entregue por Rui Moreira e o vereador Ricardo Valente já está no balcão da Serrana. “Estou-me a segurar a ela”, diz Mónica enquanto acarinha o objecto. O proprietário do edifício - onde está também a Casa Arcozelo e a Pensão Douro – é, desde 2017, o empresário Pedro Pinto, dono da Livraria Lello. E à Câmara do Porto este já fez chegar uma contestação do certificado dado à Serrana, que o impede, pelo menos para já, de levar os seus planos para o edifício avante. Mónica Oliveira sabe estar numa “luta desigual”. Mas, contra agonias e dias do avesso, não há dinheiro do mundo que a convença a sair. É que, por ali, os protagonistas da história não são apenas euros.

A “vida em suspenso” tornou-se narrativa dominante para Miguel Carneiro e Susana Fernandes. Os proprietários da Moreira da Costa, a mais antiga livraria da cidade, deixaram de comprar livros e bibliotecas quando o proprietário do edifício onde está também o renovado hotel Infante Sagres lhes comunicou a intenção de os “despejar”. A candidatura ao Porto de Tradição surge depois disso, mal esse processo é aberto, uma vez que – “inexplicavelmente”, nas palavras de Susana Fernandes - a livraria não integrou a lista inicial do programam camarário, na altura com 37 estabelecimentos. A Câmara do Porto acabaria mesmo por atribuir a chancela de histórica à Moreira da Costa. E na cerimónia desta segunda-feira, Susana Fernandes alegrou-se por sentir nos discursos do executivo de Moreira um tom de valorização dos comerciantes que a dada altura lhe pareceu pouco convicto. Mas nem o apoio da câmara serenou os ânimos com o senhorio. O também dono do hotel Yeatman, ainda contesta essa classificação. E aguarda-se uma decisão do tribunal.

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Moreira da Costa resiste à vontade do proprietário, que quer fazer um spa em parte da livraria Manuel Roberto

A mesma fortuna têm os proprietários do Café Embaixador, inaugurado em 1957. Lino Perestrelo fala em dois processos a decorrer em tribunal: um por causa do próprio contrato de arrendamento, outro pela classificação camarária. “Isto mexe com o nosso dia-a-dia, andamos sempre condicionados”, lamenta. À entrada do histórico café, a poucos passos dos Aliados, a placa do Porto de Tradição já assume lugar cimeiro. Será suficiente para a salvação?

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