Poderá R. Kelly sobreviver a Surviving R. Kelly?

Uma série documental do canal Lifetime documenta, com depoimentos das vítimas, décadas de acusações de abusos sexuais e comportamentos predatórios do músico de r&b de Chicago.

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Décadas de alegações contra R. Kelly foram reunidas na série documental Surviving R. Kelly Mario Anzuoni/Reuters

O 2019 de R. Kelly começou com um single lançado na Internet. Mas não é por isso que o cantor, produtor e escritor de canções de r&b tem sido falado. É que há vários anos que R. Kelly, o auto-intitulado “flautista de Hamelin do r&b”, é alvo de acusações de todo o tipo de más condutas sexuais, de abusos a assédio, de manipulação a violação de menores, passando pela de que seria o instigador de uma espécie de culto sexual. Alegações de numerosas fontes traçam o retrato de um predador em série. Até agora, o cantor negou-as.

A narrativa à volta do músico de Chicago que nos anos 1990, com I believe I can fly, da banda sonora de Space Jam, fez um êxito pop que é um clássico do gospel, mudou. E em parte a responsabilidade é de uma nova série documental do canal Lifetime, Surviving R. Kelly, que dá voz a alegadas vítimas destes abusos, ocorridos ao longo de várias décadas.

Não é que estas acusações não fossem chegando ao espaço mediático. Entre 2002 e 2008, por exemplo, Kelly foi julgado por pornografia infantil, por causa de uma filmagem em que aparecia com uma rapariga de 14 anos. Saiu absolvido. Em 1994, então com 27 anos, casou com a cantora Aaliyah (1979-2001), que na altura tinha apenas 15. Praticamente nada lhe aconteceu: continuou em digressão e a acumular êxitos, em nome próprio ou com outros músicos, de Whitney Houston a Michael Jackson, passando por Lady Gaga ou Jay-Z.

Mas a sorte de R. Kelly parece estar a mudar. Dividida em seis episódios, a série transmitida na semana passada levou as autoridades a reconsiderarem acusações antigas e até fez com que surgissem novas alegadas vítimas a denunciar de crimes que recuam até aos anos 1980.

Reacções em catadupa

Esta quinta-feira, uma das filhas de R. Kelly, Buku Abi – nascida Joann Kelly –, que não tem contacto com o pai há anos, escreveu, numa Instagram Story: “O monstro com o qual vocês estão todos a confrontar-me é o meu pai. Tenho perfeita noção de quem e do que ele é. Eu cresci naquela casa.”

Artistas que trabalharam com Kelly no passado, como Lady Gaga ou Chance the Rapper, vieram a público pedir desculpa por isso – Gaga até disse que iria retirar a colaboração entre os dois, Do what u want (with my body) dos serviços de streaming. Paralelamente, a quantidade de streams da música do músico r&b aumentou.

Entre os entrevistados contam-se adolescentes que conheceram um ídolo que se terá aproveitado das suas fraquezas e das aspirações artísticas que tinham, a própria ex-mulher do músico, jornalistas e especialistas em cultura pop e hip-hop e psicólogos clínicos, bem como os pais de jovens envolvidas em relações com o músico e que perderam o contacto com elas.

Há até o relato de uma mulher que era menor quando, como fã, foi apoiar Kelly ao seu julgamento, e que então o conheceu, acabando por se envolver com ele. Também há irmãos de R. Kelly e ex-parceiros do músico, que ajudaram a encobrir ou participaram directamente nestes alegados crimes. As vítimas, que choram e demonstram frequentemente desconforto ao falar daqueles temas, são identificadas e é referida a idade que tinham quando conheceram o músico. 

O jornalista televisivo Touré, que entrevistou R. Kelly no canal BET em 2008, é um dos intervenientes no documentário. Surviving R. Kelly recorda o confronto que estalou entre os dois quando Touré perguntou ao músico se gostava de adolescentes. A resposta de R. Kelly é bizarra: pede-lhe para especificar de que idades está a falar.

Mas a presença de Touré no documentário ganhou novos contornos esta quinta-feira, quando este foi acusado de assediar uma maquilhadora que trabalhou com ele em 2017. Terry Crews, o actor cómico e apresentador de televisão, não tardou a cancelar uma entrevista marcada com ele. Touré não é, no entanto, o único entrevistado polémico do documentário: o radialista Charlamagne the God, co-apresentador do programa The Breakfast Club, foi acusado de violação por uma rapariga de 15 anos, em 2001.

Estas presenças polémicas puseram dream hampton (que escreve o seu nome em minúsculas em homenagem a bell hooks), jornalista e produtora executiva do documentário, na defensiva. Tal como as pessoas que se recusaram a falar em frente às câmaras. John Legend é praticamente o único músico famoso que aceitou aparecer. Nomes como Jay-Z, que em 2002 lançou Best of the Both Worlds, um disco conjunto com R. Kelly (e com quem dream hampton co-escreveu o livro Decoded, em 2010), ou Questlove, por exemplo, recusaram participar (este justificou-se dizendo que foi contactado para falar do “génio” de Kelly e não quis fazê-lo).

Uma das entrevistadas é a jornalista de música Ann Powers, que relembra o fascínio que as estrelas de rock sempre tiveram por adolescentes. Referiu casos sobejamente conhecidos, como Jerry Lee Lewis, que casou com a prima de 13 anos, Elvis, que conheceu Priscilla Presley quando esta tinha 14, Chuck Berry, que cantou Sweet little sixteen e também foi acusado de estar envolvido em filmagens com menores, ou mesmo os próprios Beatles e o seu I saw her standing there, sobre uma rapariga de 17 anos.

Quanto à velha questão de se dever separar o artista da arte, o documentário não deixa margem para dúvidas: os actos alegadamente cometidos pelo músico são praticamente descritos nas suas próprias canções. Esse é, de resto, um dos temas recorrentes entre os entrevistados. Afinal, o álbum que Kelly produziu para Aaliyah no mesmo ano em que se casaram chamava-se Age Ain't Nothing But A Number.

Também se foca a diferença entre os dois registos da música de Kelly: a faceta sexualizada e explícita e a inspiracional, patente em baladas como I believe I can fly ou The world's greatest, que ainda hoje são cantadas e tocadas em escolas e igrejas. E alega-se que esta última funciona como alibi para os abusos do músico.

"Ninguém importa menos na sociedade do que as jovens negras"

Jim DeRogatis, ex-jornalista do Chicago Sun-Times, o primeiro jornal a cobrir as alegações mais sérias contra Kelly no início dos anos 2000, recebeu uma cópia da gravação do cantor com uma menor e há 17 anos que investiga o assunto, seja para aquele jornal ou para o BuzzFeed, onde escreveu em 2017 sobre o culto sexual que Kelly supostamente mantém, e cujas participantes não podem fazer nada sem o aval do músico. Esse artigo levou as activistas Oronike Odeyle e Kenyette Barnes a lançarem, primeiro na Internet e depois nas ruas, o movimento #MuteRKelly, que nos últimos dias tem protestado em frente ao estúdio do músico em Chicago.

O jornalista vem afirmando recorrentemente que estas alegações não têm feito mossa porque, parafraseando Malcolm X, “ninguém importa menos na sociedade do que as jovens negras”. DeRogatis é mencionado no documentário, mas não é entrevistado, já que está a trabalhar noutra série de documentários sobre o assunto em parceria com o BuzzFeed.

Porém, poderá haver outras razões para estes crimes terem sido ignorados. No The New York Times, a jornalista Aisha Harris menciona, além da “indiferença da sociedade ao sofrimento” das mulheres não-brancas, “os poderes protectores do dinheiro e da fama”, “a percepção que alguns têm de que os ataques contra qualquer celebridade negra masculina, por mais credíveis que sejam, fazem parte de uma conspiração racista maior” e, por fim, um factor que é muitas vezes ignorado: o riso.

A cultura pop tem de facto tratado as alegações contra R. Kelly como uma piada, pelo menos em certas ocasiões. Assim foi, por exemplo, num segmento do programa de sketches Chappelle's Show sobre a sex tape do músico, (I wanna) piss on you, uma paródia musical datada de 2003 que se foca não no facto de esta gravação envolver uma adolescente de 14 anos, mas sim no facto de envolver “chuva dourada”. O cómico Dave Chappelle ter-se-á, aliás, recusado a prestar um depoimento para Surviving R. Kelly.

A jornalista cita ainda o momento de Surviving R. Kelly em que Ann Powers vaticina que a hip-hopera absurda Trapped in the Closet, um conjunto de telediscos/canções que Kelly começou em 2005, foi uma estratégia para tornar o conteúdo sexual uma piada, iludindo a sua possível sinceridade.

É de esperar que, com novos desenvolvimentos a cada dia que passa, a história, bem como a carreira de R. Kelly, não fique por aqui. E este não será também o último músico notório a ver-se alvo de produções deste género. Na próxima Primavera, por exemplo, estrear-se-á, tanto na HBO americana quanto no Channel 4 britânico, um documentário chamado Leaving Neverland, de Dan Reed. Dividido em duas partes de duas horas cada, centra-se nas acusações de abusos sexuais de menores alegadamente praticados por Michael Jackson – para quem Kelly, recorde-se, escreveu o tema You are not alone, alegadamente inspirado numa das suas vítimas.

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