O conflito de interesses do conflito de interesses

Manter nas mãos dos deputados a apreciação e sanção de casos de má conduta só pode resultar no que tem resultado: timidez e inoperância, facilmente confundidas com conluio e compadrio.

A proposta de Jorge Lacão para criar um Comité de Ética no Parlamento com poderes sancionatórios sobre a má conduta dos deputados é uma novidade interessante de última hora na Comissão para a Transparência, que está na reta final dos seus trabalhos. A proposta reconhece – mais ainda à luz dos recentes casos de abuso de registos de presenças e despesas de deslocação – o dano provocado pelos comportamentos reprováveis dos deputados. Reconhece também o que há muito está à vista: que não basta uma censura social limitada à “relação entre eleitor e eleito” – seja lá isso o que for num sistema eleitoral de listas fechadas – e que a incapacidade da instituição reagir à má conduta dos seus membros torna os vícios de uns no problema de todos.

O diagnóstico impunha-se, a terapêutica é que continua a não servir. Jorge Lacão propõe uma espécie de conselho executivo da Comissão de Ética, composto por três deputados prestigiados que fizessem a averiguação de situações de má conduta e propusessem sanções que vão da advertência à perda de remuneração do deputado em falta. Claramente, o Parlamento precisa de mecanismos para avaliar casos concretos de conflitos de interesses, falha ética e negligência no cumprimento das obrigações dos deputados. Que preste aconselhamento, emita recomendações e puna desvios. O problema está em insistir que sejam os membros da Assembleia a avaliar-se uns aos outros – tarefa que reiteradamente demonstraram não conseguir fazer.

Não é preciso nenhuma teoria da conspiração para explicar a ineficácia do sistema atual. É naturalíssimo que um deputado tenha pudor em apreciar a conduta de um colega – e muito menos a censurá-la publicamente. Ou cede a um impulso de solidariedade corporativista para branquear más práticas, ou cai no risco oposto de usar uma censura ética injustificada para denegrir um oponente e tirar vantagem política. Num extremo ou no outro, pedir a um deputado (ou a três “sábios”) para julgar um colega é colocar a avaliação de conflitos de interesses em... conflito de interesses!

Os deputados têm resistido a mecanismos de escrutínio externo, alegando que põem em causa a soberania constitucional da Assembleia da República. O argumento não convence, a não ser para demonstrar que o Parlamento quer continuar como está, em rédea livre. É perfeitamente possível criar gabinetes especializados de averiguação, aconselhamento e produção de conhecimento, com autonomia de atuação e obrigações claras de publicitação do seu trabalho, que façam recomendações de ação a uma Comissão de Ética com autoridade para aplicar as recomendações – ou justificar a sua inação face a elas. É seguir exemplos como o do Office of Congressional Ethics e o Office of Government Ethics nos EUA, ou do Committee on Standards in Public Life do Reino Unido – este sem funções de averiguação mas com um leque amplo de poderes de aconselhamento.

Não é preciso inventar a roda, basta querer pôr as coisas a rodar. Criar mecanismos de averiguação e sanção na Assembleia da República – e convinha não esquecer o Governo – é um passo na direção certa. Mas manter nas mãos dos deputados a apreciação e sanção de casos de má conduta só pode resultar no que tem resultado: timidez e inoperância, facilmente confundidas com conluio e compadrio.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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