Às portas da terra prometida

Há poucas semanas quis o destino, irónico como só ele, que se desse a coincidência de se testemunhar a chegada da sonda InSight a Marte, essa terra prometida para muitos, quando, dos mares da Índia, chegavam notícias do infortúnio de um jovem norte-americano.

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Reuters/CARLOS BARRIA

Guiados pelos coiotes, caminhando lado a lado com centenas de rostos anónimos e enrugados por histórias de misérias várias, Jakelin, de sete anos, e o pai percorreram os mais de 3300 quilómetros que separam San Antonio Secortéz, no Norte da Guatemala, da fronteira mexicana com os Estados Unidos. Aí, às portas da terra prometida, nos primeiros dias de Dezembro, filha e pai foram detidos pelas autoridades norte-americanas, que os colocaram separados sob custódia. Passadas 48 horas, uma informação oficial fez saber que Jakelin morrera, desidratada.

Neste dia de Natal, o silêncio percorreu as ruas daquela pequena comunidade guatemalteca. De acordo com notícias que nos chegam do outro lado do oceano, Jakelin foi enterrada após uma cerimónia simples que o pai, Nery Caal, acompanhou, em pranto, através de uma ligação por vídeo. A mãe e o avô despediram-se da menina ainda em casa, de onde não quiseram sair, consumidos pela tristeza e resignação. A desventura de Jakelin, nascida há sete anos numa aldeia no Norte de Guatemala, terminou assim e repousará no esquecimento colectivo que se impõe, dia após dia.

Há poucas semanas quis o destino, irónico como só ele, que se desse a coincidência de se testemunhar a chegada da sonda InSight a Marte, essa terra prometida para muitos, quando, dos mares da Índia, chegavam notícias do infortúnio de um jovem norte-americano, movido pelo espírito missionário, que tombara ao chegar à praia de uma ilha conhecida por ser impenetrável, cravado pelas setas nativas. O que o ser humano consegue fazer a dezenas de milhões de quilómetros de distância torna-se uma impossibilidade terrena derrubada por arcos e flechas.

O que diria hoje Tuiavii de Tiávea destas desventuras do Papalagui? Há praticamente cem anos, Erich Scheurmann publicava na Alemanha os discursos de Tuiavii, chefe da aldeia de Tiávea, na ilha Upolu, Samoa, com quem convivera nos primórdios do século. Deu ao livro o título Papalagui [editado em Portugal pela Antígona] palavra samoana cujo significado literal é "aquele que furou o céu", pois os discursos tinham por base as notas que aquele chefe tribal escrevia sobre o homem branco, os seus hábitos, as suas conquistas, os seus vícios, as suas fraquezas.

“Julgais que nos trazeis a luz mas, na verdade, gostaríeis de nos atrair para as vossas trevas”, terá dito Tuiavii de Tiávea ao papalagui defronte de si, que o escutava fascinado pelo pensamento sem mácula do pecado da civilização ocidental de então, moldado apenas pela natureza exuberante que apenas se encontra… num paraíso terrestre.

Sentado num tronco de uma palmeira caída junto do areal, com o seu kava na mão, o olhar escuro e intenso pousado algures no mar azul celeste, Tuiavii diria aos seus irmãos indígenas:

— É bom estar do lado certo da terra prometida.

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