Crise na (ou pela) Reserva Federal?

O modelo macroeconómico dominante da actualidade, o modelo dos novos keynesianos, atribui um papel central à política monetária e, em particular, à taxa de juro determinada pelo banco central

De acordo com uma fuga de informação, divulgada pela CNN, o presidente Trump terá sondado “os seus assessores sobre se teria base legal para demitir Jerome Powell,” presidente da Reserva Federal (o “Fed”). Essa seria uma decisão “sem precedentes”.

Os tweets e outras intervenções públicas de Trump, sobre a política monetária conduzida pelo Fed, têm sido suficientemente explícitos, tendo já dito que o Fed “ficou doido” e que estaria “a cometer um erro” ao aumentar a taxa de juro de referência “tão rapidamente” (10 de Outubro) e que não desejava que a economia americana abrandasse “nem um pouco” quando não há sinais de inflação (9 de Outubro). 

Com estas afirmações, o presidente Trump terá reagido a uma entrevista de Powell à televisão pública dos EUA (PBS), a 3 de Outubro, na qual indicava que iria continuar a ‘normalizar’ a política monetária, porque esta seria ainda demasiado acomodatícia, e que a taxa de juro definida pelo Fed estaria longe do nível considerado ‘neutro’, ou seja, sinalizando vários aumentos da taxa de juro de referência.

Apesar da utilização de uma linguagem, algo desbragada, de Trump, já sua ‘imagem de marca’, que contrasta com o tratamento com pinças que anteriores presidentes dos EUA adoptaram na avaliação da política monetária do Fed, as críticas de Trump à acção do Fed parecem legítimas.

Contudo, os mercados financeiros parecem ter reagido mal à perspectiva da demissão do presidente do Fed, com um comentador a designar, com bastante exagero, a eventual demissão de Powell como “insana” e “loucura total”. Mas será mesmo?

Um pouco de história da política monetária dos EUA

É oportuno relembrar um pouco da história do final dos anos 70. Na sequência da crítica de académicos proeminentes, nomeadamente Milton Friedman, e de um período caracterizado por altas taxas de inflação e baixas taxas de crescimento económico (“estagflação”), a Reserva Federal, sob a presidência de Paul Volcker nomeado pelo presidente Carter no final de Julho de 1979, adopta uma política monetária extremamente restritiva para combater a inflação.

A taxa de juro de referência determinada pelo Fed (“Effective Federal Funds Rate”) aumenta de 10,9%, em Junho de 1979, chegando a atingir 19,1% em Junho de 1981, com um pico de 20% nesse mês como se lê no gráfico junto.

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No mesmo gráfico, a cinzento sombreado, estão marcados os períodos de recessão nos EUA, grosso modo, períodos em que a actividade económica, medida pelo PIB, diminui. O gráfico sugere que os aumentos da taxa de juro de referência podem conduzir a recessões económicas.

Com efeito, o aumento das taxas de juro foi tão abrupto e significativo que o desemprego disparou acima de 10% e o investimento caiu, conduzindo a uma profunda recessão da economia americana em 1980-1982. A crise gerou protestos públicos em Washington contra o Fed, os mais significativos na história daquela instituição. Note-se que essa política monetária poderá ainda ter contribuído para a não reeleição de Jimmy Carter, com a eleição de Ronald Reagan em 1980.

Contudo, a taxa de inflação, que atingiu um pico de 14,8% em Março de 1980, caiu abaixo de 3% em 1983.

O período que se seguiu, entre 1984 e 2007, é designado como o período da grande moderação nas economias desenvolvidas, caracterizado por uma evolução benigna de vários indicadores macroeconómicos, nomeadamente, baixas taxas de inflação e ciclos económicos (‘flutuações’ do PIB) mais suaves.

A política monetária restritiva adoptada por Paul Volcker (Fed), claramente independente do poder político, dando primazia ao combate à taxa de inflação em detrimento ao combate à taxa de desemprego e à promoção do crescimento económico, ainda hoje permanece na psique de banqueiros centrais e tornou-se central aos modelos teóricos que hoje norteiam a política macroeconómica e a política monetária nos países mais desenvolvidos.

Crise actual fabricada pelo Fed e um teste ao modelo macroeconómico dominante?

De facto, o modelo macroeconómico dominante da actualidade, o modelo dos novos keynesianos, atribui um papel central à política monetária e, em particular, à taxa de juro determinada pelo banco central.

De forma simplificada, de acordo com aquele modelo, o banco central deve subir a taxa de juro de referência se a taxa de inflação estiver acima do objectivo, o que ocorre no presente, mas apenas ligeiramente. A taxa de inflação dos EUA foi de 2,2% em Novembro, mas oscilou entre 2,1% e 2,9% em 2018, quando o objectivo definido pelo Fed é de 2%.

Outra forma de interpretar as regras de política monetária do modelo dominante é a seguinte: o Fed deve subir as taxas de juro se a actividade económica está acima do seu potencial (que é meramente inferido e não observável), ou deve subir a taxa de juro de referência se a taxa de desemprego está abaixo da “taxa de desemprego natural” (também uma variável inferida e não observável), que seria a taxa de desemprego mínima da qual não resultaria pressão (insustentável) para aumento dos salários e, depreende-se, do nível dos preços.

Taxa de desemprego demasiado baixa para o Fed

A taxa de desemprego dos EUA, 3,7% em Novembro de 2018, está nos níveis mais baixos dos últimos 49 anos e muito abaixo da “taxa de desemprego natural” estimada em 4,4% na reunião de 19 de Dezembro do comité do FED que decide a política monetária.

Ou seja, o Fed está preocupado, porque considera que a taxa de desemprego dos EUA é demasiado baixa e tem receio que o “emprego a mais” gere inflação e, por isso, sobe a taxa de juro de referência. Além disso, considerará que o período de crescimento económico, que se iniciou em meados de 2009, já dura há demasiado tempo, ou seja, estima que o PIB estará muito acima do seu potencial.

Porque estima, sem conseguir medir nem determinar com certeza, que o desemprego é demasiado baixo e que o PIB está muito acima de onde deveria estar, o Fed antecipa-se e aumenta as taxas de juro de referência, tudo para controlar a inflação e evitar que esta suba mais.

De facto, em Março de 2015, quando iniciou o processo de ‘normalização’ da política monetária com o aumento da taxa de juro de referência, a taxa de desemprego estava em 5% e o Fed estimava a “taxa de desemprego natural” (NAIRU) em 4,9%, estando nessa altura a taxa de inflação próxima de 0%. Quase quatro anos decorridos de aumentos da taxa de juro de referência, o Fed reviu em baixa a NAIRU para 4,4%, mas a taxa de desemprego caiu “muito abaixo” desta (3,7%).

Será que a política restritiva do Fed evita a inflação ou causa uma crise?

O Fed deposita a sua confiança num modelo teórico e, de forma algo autista, com a inflação baixa e próxima do objectivo definido (2%), está a adoptar uma política monetária progressivamente mais restritiva, sem pausas, aumentando com regularidade a taxa de juro de referência e retirando liquidez da economia (50 mil milhões de dólares por mês).

Isto, num período, em que os mercados financeiros dos EUA tinham atingido picos históricos.

O Fed, sob a presidência de Powell, segue, por conseguinte, uma política monetária arriscada.

Será que consegue que a taxa de desemprego suba suavemente dos 3,7% para os 4,4% (a taxa NAIRU que estima), ou será que não causa uma crise financeira e uma recessão económica, sendo forçado então a alterar o rumo em 180 graus?

Sente-se no ar o fim de uma era de crença inabalável nas teorias macroeconómicas da ‘grande moderação’!

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