Beijar a vida em ambas as faces

Maria Teresa Cárcomo Lobo faleceu no Rio de Janeiro a 8 de Dezembro, aos 89 anos. O PÚBLICO reedita online o destaque sobre ela que editou a 5 de Agosto de 2002. Para a história ficou como a primeira mulher a integrar um governo em Portugal: foi subsecretária de Estado com Marcello Caetano. Um grande passo, que aparece apenas como uma etapa de uma vida cheia de realizações e de projectos.

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Maria Teresa Cárcomo Lobo fotografada em Lisboa em 2002 pelo PÚBLICO MS MIGUEL SILVA - PòBLICO

Começando por um lugar-comum, já que se trata de uma pessoa incomum, o livro que diz mais a ter marcado foi “Olhai os Lírios do Campo”, de Eurico Veríssimo, que leu com 11 ou 12 anos, em Angola. Não pensava, então, que parte substancial da sua vida se desenrolaria no país pátria daquele escritor, o Brasil. E logo aí bebeu uma frase da personagem Olívia que a tem alimentado desde então: “Eu quero agarrar a vida pelos ombros e beijá-la em ambas as faces.” E é isso que Maria Teresa de Almeida Rosa Cárcomo Lobo faz desde que nasceu em Luanda, a 18 de Fevereiro de 1929, há 73 anos portanto: agarrar a vida, com um enorme despojamento.

É uma senhora bonita, elegante, distinta, com um andar calmo e um olhar perscrutante, que sai de uns olhos negros, redondos e grandes. Um olhar que transborda desejo, de conhecer, de ver, e que acompanha uma voz que, quando se multiplica em palavras, irradia segurança, convicção, humildade, dúvidas e inteligência. Mas Maria Teresa Cárcomo Lobo não desperdiça palavras. Fala num estilo curto. Directo. Com matizes de tom de voz e carradas de entusiasmo, quando fala do presente, quando opina, ou mesmo quando se questiona, ou apenas diz: “Não sei.” Já sobre a sua vida fala com inegável orgulho, mas sem presunção e quase que resume o muitíssimo que fez e faz a um outro lema de vida: “Eu tenho para mim que nós podemos não ganhar, mas não precisamos de perder logo de saída!”

Aos 73 anos, volta mais uma vez a Portugal, onde tem dois irmãos, duas irmãs, e vários sobrinhos, com os quais através da Internet fez uma pesquisa sobre o seu nome e encontrou o currículo, referências a livros, palestras e até sentenças dadas como juíza federal do estado do Rio de Janeiro.

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Está de férias, oficialmente. Na prática, desdobra-se em encontros e trata de assuntos relacionados com a sua tese de doutoramento, sobre “A condição jurídica da mulher na União Europeia”, orientada pelo professor João Luís Mota Campos, na Universidade Católica portuguesa, ela que é professora de Direito Comunitário na Pontíficia Universidade Católica, a PUC do Rio de Janeiro, e senhora da cátedra 122 da Academia Brasileira de Ciências Económicas, Políticas e Sociais.

As férias são curtas, duram menos de quinze dias, e gozou-as, sem os três filhos e cinco netos, para voltar ao Rio de Janeiro, onde dirige um projecto para a UNESCO, a Carta Judiciária do Brasil. Isto, além de não parar de proferir conferências, escrever livros e presidir a um lote de instituições e organismos ligados ao direito, no Brasil, país que escolheu para viver após o 25 de Abril. Uma mudança radical que explica dizendo apenas. “Depois da revolução, fiquei sem função no BNU, era consultora e disseram:‘Agora não precisamos.’”

Começar de novo

O motivo da ruptura não se prendia propriamente com o conteúdo ou a necessidade dos pareceres e estudos que então elaborava, mas sim com o facto de ser, à época, uma figura proeminente da ditadura: era deputada à Assembleia Nacional, eleita como independente nas listas da União Nacional, e tinha sido, entre 21 de Agosto de 1970 e 6 de Novembro de 1973, subsecretária de Estado de Saúde e de Assistência, do Governo de Marcello Caetano, tornando-se, assim, a primeira mulher a integrar uma equipa governamental em Portugal.

Uma estreia que surgiu por convite pessoal do presidente do Conselho, Marcello Caetano, que tinha sido seu professor na Universidade de Direito de Lisboa. Visitou-o, durante a licença graciosa que gozou quando era funcionária do BNU em Moçambique, território onde viveu longos anos — após ter exercido o notariado em Macau — e onde foi também consultora da Junta Provincial de Povoamento de Moçambique, do Instituto do Algodão de Moçambique e da Cooperativa Agrícola do Limpopo, publicista no “Diário de Lourenço Marques” e integrou como fundadora o movimento das cooperativas e os Estudos Cooperativos.

Assim, aos 46 anos — “Nunca sei a minha idade, me sinto tão jovem”, diz enquanto faz a conta aos anos num papel —, muda de profissão, de casa, de cidade, de continente, de vida. “Quando cheguei ao Brasil, a minha principal preocupação era sobreviver. Ia aos bancos do Brasil, entregava o meu currículo e a resposta era: ‘Ah é bom de mais.’” Contra si, diz, tinha a idade, num país como o Brasil à época. Acabou por ser convidada para uma empresa de média dimensão, com um salário abaixo da sua qualificação, mas correu o risco e ganhou a aposta: “Fui ascendendo na empresa e cheguei a vice-presidente.”

No início dos anos 80, esta mulher, que gosta de lançar desafios a si mesma, cansou-se da estabilidade aparente do cargo de gestão. E voltou a jogar os dados da vida. Em 1982, com 53 anos, inscreve-se na Ordem dos Advogados do Brasil. Começou a advogar e frequentou aulas nocturnas para se pôr a par do sistema tributário brasileiro.

Finalmente, juíza

Meia dúzia de anos depois, impõe-se novo sobressalto, motivada pelas leitura de Carl Jung que lhe provocou uma “pancada”, ao dizer que a pessoa “tem obrigação de se realizar consoante o seu ideal de vida”. Com o Jung presente, passou, um dia, os olhos pelo boletim da ordem dos advogados do Brasil. Tropeçou num anúncio para juiz federal, onde não aparecia o limite de idade de 35 anos, exigidos no Brasil para ingressar na carreira geral de juiz.

Foi o realizar de um “sonho de toda uma vida” e que lhe foi incutido pelo facto de seu pai ser juiz: “Ele foi um sacerdote da justiça e eu tinha aquela concepção da justiça, do magistrado.” O salto não foi fácil. Teve que fechar o escritório, arriscar mudar de profissão mais uma vez. E, em 1988, com 59 anos, ingressa na carreira de juíza federal, da 28ª Vara Federal do Rio de Janeiro. O sucesso foi tanto que, entre 1993 e 94, dirigiu o Foro da Justiça Federal do estado do Rio.

Em 1997, a dois anos de se aposentar como juíza, começou a preparar-se: “Para que a Maria Teresa Lobo aparecesse não só como juíza federal — eu considero-me sempre juíza, até morrer serei juíza —, mas já noutras perspectivas, da docência, das conferências, das pesquisas, dos estudos, foi aí que eu comecei a interessar-me pelo direito comunitário e também numa perspectiva do Mercosul.”

Ora, quando Maria Teresa Lobo se interessa é para levar a sério. Daí ter-se tornado especialista em direito comunitário e nas relações jurídicas e económicas do Mercosul e da União Europeia. Mas os seus interesses actuais não se esgotam no espaço comunitário, olha também para o espaço lusófono, ela que nasceu em Angola, viveu em Moçambique, Macau, Portugal e Brasil. E diz sorrindo e os olhos brilhando qual seria o próximo beijo na face da vida que gostaria de dar: “Gostava de ser embaixadora da lusofonia, de andar pelos oito países que falam português na América, na Europa, na África e na Ásia, para aplicar a minha energia a potenciar a lusofonia a apelar para actos concretos.”

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