Da licença graciosa ao encontro com Marcello Caetano

Maria Teresa Cárcomo Lobo faleceu no Rio de Janeiro a 8 de Dezembro, aos 89 anos. O PÚBLICO reedita online o destaque sobre ela que editou a 5 de Agosto de 2002. Para a história ficou como a primeira mulher a integrar um governo em Portugal: foi subsecretária de Estado com Marcello Caetano. Um grande passo, que aparece apenas como uma etapa de uma vida cheia de realizações e de projectos.

Maria Teresa Cárcomo Lobo fotografada em Lisboa em 2002 pelo PÚBLICO
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Maria Teresa Cárcomo Lobo fotografada em Lisboa em 2002 pelo PÚBLICO MS MIGUEL SILVA - PòBLICO
Maria Teresa Cárcomo Lobo fotografada em Lisboa em 2002 pelo PÚBLICO
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Maria Teresa Cárcomo Lobo fotografada em Lisboa em 2002 pelo PÚBLICO MS MIGUEL SILVA - PòBLICO

Maria Teresa Lobo foi a primeira mulher a integrar um governo em Portugal como subsecretária de Estado da Saúde e da Assistência, com Marcello Caetano. A própria Maria Teresa Lobo explica ao PÚBLICO que “foi um convite pessoal do presidente do Conselho”, que lhe foi dirigido quando veio a Lisboa, em gozo de licença graciosa, a que teve direito como chefe do Gabinete de Estudos Económicos e Financeiros do BNU em Moçambique.

Nessa visita ao antigo professor, Maria Teresa Lobo falou-lhe do que pensava do país, de Moçambique, “como uma ex-aluna ao seu professor, com toda a franqueza, fazendo observações”. Ele ouviu e, antes que ela regressasse a Moçambique, convidou-a: “Seria a primeira vez e ponderei bem o desafio de entrar na política. Mas eu encaro tudo isso com muita naturalidade.” 

Perante a estranheza manifestada pelo PÚBLICO face a um convite baseado apenas numa conversa, Maria Teresa Lobo desfaz um pouco mais do novelo. Relata, assim, que desde sempre quis cursar Direito e que, ainda jovem em Luanda, escreveu a Marcello Caetano — não se lembra bem do cargo que ele ocupava, mas tudo indica que fosse comissário da Mocidade Portuguesa —, protestando contra o facto de só existirem bolsas de estudo para ciências e não para direito. Uma paixão incutida por seu pai, também juiz, que — mesmo perante a impossibilidade financeira de custear um curso em Lisboa — a levava a afirmar, como ainda hoje o seu irmão mais velho lhe recorda: “Não sei quando vou, nem como vou, mas eu sei que vou.”

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A determinação incansável acaba por ser compensada por uma bolsa e Maria Teresa Lobo ruma à Faculdade de Direito de Lisboa, onde, no segundo ano, encontra como professor de Direito Administrativo Marcello Caetano: “No primeiro dia de aulas, quando começou a ler a lista dos alunos e chegou ao meu nome parou. Depois pediu que a aluna Maria Teresa de Almeida Rosa Cárcomo Lobo ficasse na sala e perguntou-me: ‘Então, como é que conseguiu vir?’ Eu expliquei-lhe.”

A partir desse momento “foi uma relação de aluna professor normal”. Os dois voltariam a cruzar-se no fim do curso. Marcello era reitor. Ela explica-lhe a situação. Ele responde: “Fique descansada que eu vou tratar disso.” E Maria Teresa Lobo acrescenta: “Realmente, a minha bolsa foi prorrogada por mais um ano [ano lectivo de 1951-52].”

Sobre Caetano afirma que era “um grande intelectual, um grande professor, uma pessoa íntegra”. E adverte: “Eu não quero fazer aqui um juízo, mas talvez não tivesse compreendido o momento que o mundo atravessava. Porque essa é que é a grande característica do político, pressentir o que vai vir, antecipar-se aos acontecimentos.”

Admite também que — ou por “condicionalismos” ou pelas “pessoas que o rodeavam” — Caetano não atentou bem para o momento mundial da descolonização, da autodeterminação”. Diz que os períodos de transição “são os mais difíceis”, mas que acreditou que era possível uma transição da ditadura para a democracia, já que com a abertura à economia de mercado, “pela força da conjuntura, era necessário abrir outros sectores”.

Sobre a sua passagem pelo poder, durante a primavera marcellista, diz que procurou “uma grande abertura ao social”, ao participar naquilo que foi o lançar das bases da construção do Estado-providência em Portugal. E conclui: “Agora é um pouco difícil de dizer, passados estes anos todos. Naquela altura, procurou-se fazer o máximo, em termos de segurança social. Claro que havia muitas carências, o país era muito pobre.” Como exemplo da sua gestão aponta a Casa Pia: “As crianças podiam sair livremente, deixaram de usar uniforme, tentou-se que se integrassem na comunidade. Procurei não fazer a mínima distinção.”

Mas não deixa de estabelecer as diferenças que considera haver entre o que era governar em Portugal na ditadura e o que é hoje a governação democrática: “É preciso que a comunidade também participe e seja ciente do que se está a fazer, das dificuldades e possa colaborar. Em todo o mundo, esse diálogo com a sociedade civil não havia, começa a haver agora. Tanto que hoje já não se fala em governo mas em governação. O Estado hoje é um parceiro no jogo dos actores sociais. Mas isso já foi uma conquista motivada pela globalização. Hoje vemos o papel importante das ONG [organizações não governamentais], a sociedade civil organizada, a contribuir, a dialogar. Então não havia isso.”

Quanto ao exercício do poder, à inebriação que este provocar diz: “Na política, temos de aceitar esse jogo de poderes, de interesses. Aceitei muito bem [a saída do cargo em 1973]. A função de governo é um pouco traumática. Porque o governante, seja qual for o grau na hierarquia do poder, deve actuar como se ficasse para sempre no governo. Procurar dar o melhor de si, políticas a médio prazo, a longo prazo, como se realmente fosse eterno. Mas ao mesmo tempo tem que ter a convicção de que, a qualquer momento, pode sair. Depende da conjuntura, da correlação de forças, da pressão das forças políticas.”

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