Teatro: o melhor do ano

Escolhas de Augusto M. Seabra, Gonçalo Frota e Inês Nadais.

  

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José Caldeira

10

Teoria das Três Idades

De Sara Barros Leitão. Pelo Teatro Experimental do Porto

PORTO. Teatro Municipal Rivoli / FITEI. 18 e 19/06

Carregando aos ombros, sozinha, mais de seis décadas de uma história exemplar do teatro português (e da resistência à ditadura), Sara Barros Leitão somatizou neste espectáculo as dores da criação artística num país sempre muito aquém do 1% para a Cultura. O timing da estreia, numa altura em que os resultados dos concursos da DGArtes punham em risco a sobrevivência desta e de muitas outras companhias, podia ter transformado a festa de aniversário do Teatro Experimental do Porto num funeral, só que não: Teoria das Três Idades foi uma prova de vida. I.N.

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Alípio Padilha

9

O Novo Mundo

De Os Possessos

LISBOA. Culturgest. De 27 a 30/06

Assumidamente hiperbólica, esta primeira criação de grande escala de Os Possessos – para um elenco numeroso, escrita a 12 mãos, inspirada por autores como David Foster Wallace, Roberto Bolaño e Zadie Smith. A angústia millenial transformada numa peça de tom alucinado em que morte e religião, marisco e futilidades várias se discutem igual propriedade, sem que a luz do deserto mexicano não deixe de entrar. G.F.

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Pascal Victor

8

Liliom ou a vida e a morte de um vagabundo

De Ferenc Molnár. Pela Air de Lune. Encenação de Jean Bellorini

ALMADA. Teatro Municipal Joaquim Benite / Festival de Almada. 9 e 10/07

Cristalizando com fanfarra e carrinhos de choque a sua determinação de fazer um teatro como a feira popular, “onde todas as classes sociais se encontram”, Jean Bellorini deu a Liliom ou a vida e a morte de um vagabundo uma terceira vida que não parecia possível depois das duas icónicas encarnações que o texto de Ferenc Molnár já tinha tido no cinema. Talvez esteja nisto toda a política que cabe ao teatro fazer: reiterar, noite após noite, o poder demiúrgico das histórias que começam por “era uma vez”. I.N.

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Jean Louis Fernandez

7

Actrice

De Pascal Rambert

LISBOA. Teatro Nacional D. Maria II / Festival de Almada. 15 e 16/07

Monumental interpretação de Marina Hands num texto em que Pascal Rambert faz dela uma actriz atirada para uma cama de hospital, tombada por uma doença terminal, entregue a uma continuada despedida da vida e dos seus afectos, Actrice faz-nos pensar quanta morte existe num palco de teatro, onde as personagens vivem a prazo e os corpos dos actores são usados e abandonados todas as noites. G.F.

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Christophe Raynaud de Lage

6

Ítaca I – A Nossa Odisseia

De Christiane Jatahy (a partir de Homero)

LISBOA. São Luiz Teatro Municipal / Alkantara Festival. De 7 a 9/06

No ano em que foi a Artista na Cidade, Christiane Jatahy trouxe até Lisboa, logo após a estreia em Paris, a primeira parte de um díptico baseado na Odisseia de Homero. Explorando, como sempre, a ligação entre teatro e cinema, a criadora brasileira voltou a implicar o espectador, lembrando-nos que o destino de uns tem sempre a cumplicidade de outros. A água cai e inunda o palco. Ninguém se afoga na plateia, mas todos (idealmente) se molham. G.F.

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Mário Sabino Sousa

5

Ivone, Princesa de Borgonha

De Witold Gombrowicz. Pela Ar de Filmes. Encenação de António Pires

LISBOA. Teatro do Bairro. De 21/03 a 8/04; PORTO. Teatro Nacional São João. De 11 a 22/04

António Pires é um encenador que gosta de se confrontar com textos difíceis e/ou raros, como este, de um dos grandes escritores do século XX. De novo ele ousou, e logrou, com o apoio na dramaturgia de Luísa Costa Gomes e um aparato visual notável (cenário de João Mendes Ribeiro, figurinos de Luís Mesquita). No papel de Rainha, Maria João Luís foi absolutamente soberana, confirmando uma vez mais o seu considerável talento. A.M.S.

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Vitorino Coragem

4

A Fera na Selva

De Marguerite Duras (a partir de Henry James). Encenação de Miguel Loureiro

LISBOA. Centro Cultural de Belém. De 4 a 6/10

Uma belíssima aproximação a Henry James por via de Marguerite Duras, com magnífica cenografia de Tomás Colaço. Para esta relação entre uma mulher e um homem nunca resolvida ou sequer esclarecida (afinal, o que há ou houve entre eles?) Miguel Loureiro foi buscar dois notáveis actores insuficientemente reconhecidos, por se dedicarem sobretudo às ficções televisivas, Filipe Duarte e Margarida Marinho. Inconcebível é que, no que já é um costume do Centro Cultural de Belém, este espectáculo tivesse estado em cena apenas três dias. A.M.S.

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Joseph Banderet

3

C’est la Vie

De Mohamed El Khatib

LISBOA. Teatro Nacional D. Maria II. 28 e 29/11; PORTO. Teatro Municipal Campo Alegre. 6 e 7/12

Depois de mergulhar no luto pela morte da sua mãe em Finir en Beauté, Mohamed El Khatib pensou na situação inversa: os pais-que-perdem-filhos, esses órfãos ao contrário, como se diz em C’est la Vie. Daniel Kenigsberg e Fanny Catel, actores que passaram por essa experiência-limite, partilham pedaços da sua tragédia pessoal, sem poderem escapar à sua própria pele. A delicadeza de El Khatib garante o quase impossível tom justo. G.F.

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Estelle Valente

2

Banda Sonora

De Ricardo Neves-Neves e Filipe Raposo. Pelo Teatro do Eléctrico. Encenação de Ricardo Neves-Neves

LISBOA. São Luiz Teatro Municipal. De 8 a 18/03

O título é eminentemente cinematográfico, e há referências ou aproximações a esse âmbito, mas o encontro entre Ricardo Neves-Neves, autor e encenador extremamente singular, e o compositor Filipe Raposo deu azo a um espectáculo de fertilíssima imaginação que é um marco no teatro musical em Portugal. Banda Sonora tem parentescos com contos infantis, até nalguma crueldade, mas o delírio e o apuramento são de tal ordem que suscitam um frenesim eufórico. A.M.S.

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james bass photography

1

Provisional Figures Great Yarmouth

De Marco Martins

PORTO. Teatro Municipal — Rivoli / FITEI. 15 e 16/06; LISBOA. Teatro Maria Matos,. De 28/06 a 4/07

Como cicatrizes, as dificuldades do processo de criação de Provisional Figures Great Yarmouth – e as circunstâncias mais ou menos terríveis daqueles que nele participam – ficaram inscritas na carne, entranhadas até aos ossos, do poderoso espectáculo que Marco Martins construiu com uma comunidade de habitantes (imigrantes portugueses incluídos) de uma decadente cidade balnear britânica, em pleno coração do “Brexit”. Mas a brutalidade objectiva daquele lugar estigmatizado pelas estatísticas da pobreza e das dependências, e destas vidas ligadas ao sangue e à violência da indústria de transformação alimentar – uma brutalidade que poderia ter pesado como chumbo sobre Provisional Figures Great Yarmouth e esmagado o espectáculo –, encontra a sua redenção num objecto iluminado pela possibilidade de epifania, esteja ela numa canção dos Nirvana, numa receita de peru ou no amor. Que Marco Martins, como em espectáculos (e filmes) anteriores, tenha feito poesia com um material tão propenso à pornografia e ao voyeurismo quanto as alegrias e as misérias dos desapossados – e isto sem perder de vista o compromisso documental de registar, para memória futura, “os despojos da crise” – é o grande prodígio desta criação. Juntamente com o facto de nos ter dado talvez a primeira grande tradução em português do século XXI para uma expressão lapidar, mas nem por isso menos épica: working class heroes. I.N.

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