Quando as luzes se apagarem, brilharão os corpos que pagaram a crise

Dos estaleiros de Viana do Castelo aos bairros mais duros da Grande Lisboa, Marco Martins vem-se fixando obstinadamente nos despojos da crise. Desta vez, foi encontrá-los em Inglaterra, onde nos tornámos os melhores a esquartejar perus e a limpar rabos de reformados com Alzheimer. Provisional Figures Great Yarmouth, peça que agora chega ao Porto e a Lisboa, tinha tudo para ser um matadouro, só que não: este espectáculo salvou várias vidas.

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Os números sempre foram provisórios, como no título que Marco Martins acabou por roubar ao jargão das estatísticas da imigração, mas, mais desemprego, menos “Brexit”, ainda hoje haverá cinco ou seis mil portugueses que sabem marcar com um X no mapa de Inglaterra o lugar exacto onde o zumbido das agulhas dos salões de tatuagens se cruza com o cheiro a fritos dos estaminés de fish & chips e com os néons intermitentes daquela que só pode ser a maior concentração de casas de máquinas a oeste de Las Vegas. Há dias em que parece uma trip das boas, com castelos insufláveis e algodão doce. Há dias em que parece um apocalipse de obesidade mórbida, gravidez adolescente e overdoses de heroína. É o lugar exacto onde ainda hoje, mais desemprego, menos “Brexit”, o bacalhau para demolhar, as alheiras de Mirandela e o vinho em boxes de cinco litros se pagam em libras num dos dois minimercados Lusa, onde há missa em português ao primeiro domingo do mês na igreja católica da Regent Street (“Tens de dizer ‘Rua Augusta’, se não ninguém conhece”), onde à entrada de um beco sem saída alguém escreveu “Dukes of Ribatejo”. O tipo de lugar a que por sorte ou por azar cinco ou seis mil portugueses passaram a chamar casa.

Great Yarmouth. “The finest place in the universe”, escreveu Charles Dickens em 1849, quando para ali levou um dos mais amados working class heroes da Inglaterra vitoriana, David Copperfield, sem imaginar que 160 anos depois a indústria alimentar e a doentia atracção dos ocidentais por carne processada e perus para rechear no Natal lhe dariam abundante descendência portuguesa. “Uma cidade de merda”, actualiza Victoria, que numa vida anterior, quando tinha 22 anos, tentou afogar num jacuzzi com cinco desconhecidos a tragédia proletária de se ver coroada Miss Great Yarmouth (200 libras não pagam um ano de sorrisos nos jornais locais e de presenças em quermesses, mas pagam uma dívida a um dealer, e Victoria tinha e ainda tem uma irmã bastante pragmática). 

A ela nunca lhe disseram que Great Yarmouth era “o Algarve inglês”. Nunca lhe mentiram, ou pelo menos não acerca disso. Também não a chamaram para uma entrevista depois de responder a um anúncio do Correio da Manhã, nem lhe pediram para mostrar as mãos e os dentes, nem lhe disseram que ia para Inglaterra embalar fiambre, also known as esquartejar perus (peitos para a Europa, testículos para a China). Victoria e Carmo continuariam até hoje a viver vidas paralelas em Great Yarmouth se não se tivessem cruzado num ensaio do espectáculo que Renzo Barsotti convenceu Marco Martins a montar, depois de ter descoberto “os portugueses da Bernard Matthews” (also known as Bernardo Mateus), então um colosso da indústria alimentar do Reino Unido movido a mão-de-obra barata importada da periferia da União Europeia. Em 2012, já fora o produtor italiano, para quem o trabalho é definitivamente “o grande tema do século XXI”, a levá-lo aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, então já em estado terminal, onde Marco Martins acabaria por levantar um auto popular com 16 trabalhadores; aí se iniciou uma aproximação aos “despojos da crise” que, radicalizando o vaivém entre ficção e realidade, o encenador e cineasta prosseguiu no seu último filme, São Jorge (2016), descida ao submundo das cobranças difíceis e da sobrevivência nos bairros mais duros da Grande Lisboa, e agora aprofunda nesta peça em que junta no mesmo palco crepuscular quatro working class heroes da última vaga da imigração portuguesa, quatro outcasts locais que não tiveram pernas para fugir quando a explosão do turismo low-cost no Mediterrâneo apagou a costa inglesa do mapa, e ainda um cozinheiro esloveno.

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Provisional Figures Great Yarmouth apresenta-se hoje e amanhã no Rivoli e depois, de 28 de Junho a 4 de Julho, em Lisboa, no Maria Matos JAMES BASS PHOTOGRAPHY

É para eles finalmente sobressaírem que as luzes se vão apagar sexta-feira e sábado no Porto, onde, depois da estreia de há duas semanas no Norfolk & Norwich Festival, Provisional Figures Great Yarmouth se apresenta no Rivoli, via FITEI — Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, e depois, de 28 de Junho a 4 de Julho, em Lisboa, no Maria Matos, onde encerrará o ciclo Migrações (e todo um período da vida daquele teatro municipal, mas essa já seria outra história, outra despedida). No escuro, veremos como brilham os corpos que pagaram a crise. Hão-de mostrar-nos o cabelo quebradiço, os braços que já não dá para esticar totalmente, as pernas que passaram a coxear, as cicatrizes da queda aparatosa que pôs fim a uma vida inteira de trabalho, a pele que tiveram de largar, as tatuagens que fizeram para poder aguentar, e as que desfizeram porque já não aguentavam.

“Great Yarmouth? Deus do céu, é a primeira vez que lá vais?”, pergunta o funcionário na bilheteira da estação, ar apreensivo até perceber que a viagem vai ser de ida e volta.

Great Yarmouth. Carmo (dois ataques cardíacos, um osso sobreposto a outro no ombro esquerdo, uma tendinite crónica, e o pior ainda foram as depressões) tem jeito para frases bombásticas à mesa do café: “Se vivesses aqui morrias.”

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“A primeira regra do trabalho com não-actores é não os pôr a representar personagens”, explica Marco Martins JAMES BASS PHOTOGRAPHY
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Fantasmas

Ao longo dos últimos dois anos, Marco Martins foi apanhando aviões para lá e para cá na esperança nem sempre muito realista de muitas milhas depois ter um espectáculo para estrear, um espectáculo a que pudesse chamar, para esconjurar a dor e a poesia de atrás dos números haver pessoas, Provisional Figures. Tinha uma história de trabalho com Renzo Barsotti e o seu Centro de Criação para o Teatro e Artes de Rua que, antes de chegar a Viana do Castelo, já vinha da comunidade cigana da Baralha, em Santa Maria da Feira, e o tema interessava-lhe “muito” — mas a primeira ida a Great Yarmouth “foi devastadora”, diz ao Ípsilon horas antes da segunda apresentação do espectáculo na cidade que, com o tempo (e com as idas e vindas dos portugueses que nunca deixaram de estar ali apenas provisoriamente, mesmo que entretanto já se tenham passado 15 anos), se impôs como protagonista. “Lembro-me de ir para a paragem às 4h da manhã, a hora em que saía o autocarro para a Bernardo, e de os portugueses passarem por mim como se fossem fantasmas. O regresso, à noite, ainda era mais duro. E depois havia os ingleses que eu via dia e noite a fumarem de pijama à porta de casa, com montes de filhos à volta. Estava a acabar o São Jorge e na minha cabeça Great Yarmouth ia ser um filme: as imagens eram muito fortes.”

Não foi um filme (talvez ainda venha a ser). Quando Marco Martins começou a fazer entrevistas para escolher os seus não-actores, já se tinha tornado claro que Great Yarmouth ia ser “um espectáculo sobre a vida dos imigrantes portugueses em Inglaterra e sobre o trabalho na Bernardo Mateus” (os anúncios dos anos em que a fábrica só tinha trabalhadores ingleses, e que hoje são memorabilia alojada no YouTube, pareceram-lhe, diz, “material muito sugestivo”). Mas a intermitência da produção à distância e da própria comunidade portuguesa, naturalmente flutuante, obrigaram-no a reconfigurar o projecto mais uma vez. “Era impossível manter um grupo fixo. Passava dois ou três meses sem cá vir e quando regressava as pessoas tinham desaparecido para outro trabalho, para outra cidade. Mudei de estratégia e pedi ao director de casting com que costumo trabalhar, o Zé Pires, para passar cá um mês a fazer entrevistas. À medida que ia vendo o que ele me mandava — a Victoria que foi Miss Great Yarmouth, o Bob que trabalhou na reserva ornitológica… —, fui percebendo que tinha de abrir o espectáculo a esta cidade estranha onde vêm parar tantas pessoas perdidas, tantas pessoas em fim de vida. O contraste entre os portugueses fechados na fábrica 12 horas por dia e os habitantes originais da cidade tornou-se uma via.”

Através deles, das suas histórias de infância, juventude e lágrimas nos olhos quando os filhos nasceram ou saltaram pela primeira vez no castelo insuflável vermelho com estrelas azuis e brancas, Great Yarmouth é outra vez a cidade technicolor dos circos ambulantes e dos sorvetes, dos hotéis chiques para os ricos e das pensões para a classe média, dos luna parks e das barracas de praia, dos bikers e dos mods; a cidade que se reconverteu, esgotado o ciclo de prosperidade do arenque e mal refeita da destruição da Segunda Guerra Mundial, em estância balnear de massas. Os casinos, os carrosséis, os pontões e o Jardim de Inverno, agora abandonado, enchem-se de gente feliz em férias e não apenas de casais de adolescentes com bebés ao colo ou de reformados que desistiram de andar a pé porque o mercado lhes impinge cadeiras de rodas eléctricas ou scooters de mobilidade em suaves prestações mensais. A Regent Street ainda não se chama Rua Augusta nem é este amontoado de lojas de souvenirs baratos e de roupa em “SALDOS SALDOS SALDOS”. As fábricas ainda não olharam para tantos quartos e parques de campismo vazios e pensaram que podiam fazer de Great Yarmouth um dormitório para operários polacos, lituanos e portugueses.

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Da estância balnear upperclass que foi na época vitoriana, Great Yarmouth passou a estância balnear proletária: no processo, tornou-se uma bolsa de pobreza endémica

Através deles, também, das suas histórias de perda, fracasso e noites mal dormidas, Great Yarmouth é de novo a cidade que correu mal. Uma bolsa de pobreza endémica, white trash, numa região genericamente rica, um fracasso estatístico em termos de desemprego, abandono escolar, gravidez adolescente, obesidade, doença mental, alcoolismo e abuso de heroína que nas eleições locais de 2014 deu 41% dos seus votos ao UKIP (entretanto já os reduziu a menos de 5%) e dois anos depois, no referendo do “Brexit”, se revelou a quinta cidade mais eurocéptica de toda a Inglaterra, com 71,5% de votos “leave”. “Um lugar bizarro”, confirma Joe McIntosh, director do SeaChange Arts, o centro de criação ligado ao circo e às artes de rua que co-produziu Provisional Figures e o acolheu na Drill House. “No período vitoriano, Great Yarmouth ganhou fama como estância balnear para gente com dinheiro, daí os belos edifícios e toda a parafernália de entretenimento da marginal. Hoje continua a ser uma das três estâncias balneares mais frequentadas de Inglaterra — recebe seis milhões de visitantes por ano —, mas quando a classe média começou a ir para o estrangeiro ficou com o refugo do mercado. A pesca e a transformação do arenque, que durante séculos foram o pilar da economia local, já tinham acabado, a marinha mercante passou a operar com barcos demasiado grandes para a barra que aqui havia, e Great Yarmouth entrou numa espiral de decadência. Há famílias que não trabalham há três gerações, desde que o avô perdeu o emprego na pesca.”

O lucro gerado pelas reservas de petróleo e de gás descobertas mais recentemente passa literalmente ao largo de Great Yarmouth e dos seus quase 99 mil habitantes. O novo maná da energia eólica também. “É riqueza que não fica na cidade. Quem trabalha nesse sector tende a viver fora daqui. Restam as fábricas, e a indústria dos cuidados domiciliários, mas essas só parecem entusiasmar a mão-de-obra imigrante”, diz Joe McIntosh. 

Sorte, azar ou lei da oferta e da procura, enquanto o desemprego local se mantiver galopante, muitos polacos, lituanos e portugueses (mas também cabo-verdianos, angolanos, curdos, paquistaneses…) continuarão a ter aqui o seu lugar a esquartejar perus ou, como se ouve dizer num dos cafés da King’s Street, “a limpar rabos de reformados com Alzheimer”. Não será o “Brexit” a fazer os ingleses salivarem com isso.

Animais de palco

Pouco passa do meio-dia, a hora em que os mais pobres dos pobres se juntam à porta do Exército da Salvação para a distribuição de comida. Raparigas de pele acastanhada pela heroína, punks de 60 e tal anos ainda com a crista intacta, só que murcha. Não há portugueses aqui. Esses caminham em passo apressado, vindos “lá do office”, onde “a assistente social não estava”. Jogam sueca no Café Tropical, SIC Notícias ligada. Trocam receitas de bolo de mármore na biblioteca, onde há um escaparate inteiro de livros sobre como lidar com a demência e permanecer são.

Já terão sido mais. Na King’s Street, os cafés e as mercearias portuguesas ainda se sucedem, há sempre gente a entrar e a sair da Fernanda Lopes Hairdresser, mas o Pátio das Cantigas (“Portuguese foods, wines and delicacies”) fechou. Cátia e Hugo, que há sete anos vieram de Almada (ele à frente, “com um contrato de trabalho na Bernardo”, depois ela e os dois filhos, que entretanto já são três), têm visto muitas famílias a irem de férias para já não voltarem. “Umas dez só no ano passado.” Na mercearia de que tomaram conta há oito meses, e que além de portugueses também abastece cabo-verdianos, angolanos e guineenses (“Essa variedade toda de feijões é por causa deles”) e ainda polacos, lituanos e moldavos que "vêm à carne e aos enchidos”, os clientes queixam-se do aumento do custo de vida, “dizem que não compensa trabalhar só para pagar as despesas”. “Há menos dinheiro, menos avios grandes. Mas vamos ficar, agora são as crianças que já não querem ir embora. O ‘Brexit’ não nos assusta, trabalhamos os dois a tempo inteiro, os miúdos estão cada um na sua escola.”

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Os nove não-actores que chegaram à estreia tiveram de se transformar em animais de palco. Mesmo quando trabalharam com a sua própria verdade. Sobretudo quando trabalharam com a sua própria verdade SOFIA BERNARDO

A imigração portuguesa em Great Yarmouth esteve no auge entre 2009 e 2014, o ano em que o UKIP fez o seu sinistro brilharete eleitoral. Mesmo depois desse sinal, “a votação expressiva no ‘Brexit’ foi um choque para os portugueses, não tinham noção de que não eram bem-vindos”, conta Marco Martins. “No dia seguinte muitos tiveram medo de sair à rua. De repente descobres que o teu vizinho não te quer aqui — e começam a aparecer histórias. Nessa fase senti um enorme decréscimo de interesse no projecto, havia o receio de que quiséssemos falar de política e as pessoas esquivavam-se.” De resto, acrescenta Renzo Barsotti, a descoberta de que a comunidade portuguesa em Great Yarmouth não é verdadeiramente uma comunidade como as que caracterizaram a emigração das décadas de 50, 60 e 70, de que “é cada um por si” (“A precariedade laboral também é uma precariedade identitária, os processos de identificação e desidentificação com Portugal e com Inglaterra são contínuos, complexos e concorrentes”), foi “dura, pessoal e artisticamente”. E uma dor de cabeça para o encenador. “Estava perdido. Sabia que queria trabalhar com as histórias pessoais, mas faltava-me um corpo de texto que lhes desse chão. E então o Gonçalo M. Tavares sugeriu-me que fizesse um espectáculo sobre aquilo em que as pessoas estão a pensar enquanto matam animais. Passou a ser sobre isso.”

No processo de passar a ser sobre isso, os nove não-actores que acabaram por chegar à estreia tiveram de se transformar em animais de palco. Mesmo quando trabalharam com a sua própria verdade. Sobretudo quando trabalharam com a sua própria verdade. A verdade dos movimentos repetitivos da Carmo na linha de montagem da Bernardo (“choques eléctricos, cortar o pescoço, tomates para a China, furar o cu, tirar pulmões”), aqui convertida em número de circo. A verdade dos cabelos em desalinho do Bob em mais um dia ventoso, quando ainda não precisava de binóculos para ver o sol reflectido na penugem de uma pêga, a sua ave favorita. A verdade da receita de peru recheado que o Ivan cozinhou na Alemanha, na Suíça, na Jamaica, em Miami, no Havai, até vir parar a Great Yarmouth, este desterro para imigrantes e misfits que já não vivem, apenas vegetam. A verdade de que o Pedro nunca ficará sem um par. A verdade da filha da Ana a dançar Nirvana em versão Patti Smith. A verdade da tatuagem que o Richard, coração partido, esfolou com uma lixa depois de uma noite de copos e drogaria. A verdade do casting que poderia ter feito da Victoria uma das Spice Girls, em vez de uma Miss Great Yarmouth. A verdade dos invernos em que dormia num quarto diferente todas as noites e dos verões em que ficava sem quarto para dormir, e de que o Peter, cujos pais geriram um hotel em Great Yarmouth, não quer falar. A verdade dos dois amores que o Sérgio teve no circo, e que estão longe de chegar ao amor que o vemos a gritar pelos pais, antes de abrir as asas do anjo que tem nas costas e voar.

Só dois dos nove não-actores de Provisional Figures alguma vez tinham entrado num teatro. Nenhum tinha lido os manifestos de Marinetti, Yvonne Rainer ou Mierle Laderman Ukeles. Quase todos parecem ter nascido para isto.

Vidas

“A primeira regra do trabalho com não-actores é não os pôr a representar personagens”, explica Marco Martins na sessão de perguntas e respostas que a Drill House abre na noite de estreia, minutos após o fim da peça e o momento Cristiano Ronaldo do Sérgio — que, claro, com a sua cicatriz de uma ponta à outra da nádega e as suas lágrimas verdadeiras roubou o palco como estava escrito (lá fora, o filho de Victoria, que estuda teatro na universidade, comenta que “nasceu uma estrela, um performer nato”). Peter, o primeiro a entrar em cena, já não esfrega as mãos uma na outra para libertar a tensão dos últimos instantes antes de as luzes se apagarem, e fala agora pelos cotovelos dos amigos portugueses que fez nos ensaios, e de como passou a andar para todo o lado com o Sérgio, apesar de esse veterano em Great Yarmouth que antes disso foi funcionário da limpeza no aeroporto de Gatwick e embalador de lasanhas numa fábrica de Bristol ainda não conseguir completar uma frase em inglês ao fim destes anos todos. Quase na outra ponta da meia-lua de cadeiras, Bob continua “a tremer como uma folha”: quando o foco se acendeu em cima dele, a marcação que dá início ao espectáculo, percebeu que não conseguia arrancar nenhuma palavra da boca.

Foi já no fim de um processo de criação particularmente lento, e para o qual precisou de recorrer a “facilitadores" (Nuno Lopes, Sara Carinhas, Romeu Runa e Victor Hugo Pontes), que Marco Martins percebeu que os dois pólos do espectáculo só podiam ser esses “dois homens da mesma idade, mais ou menos da mesma altura, mas com histórias de vida radicalmente diferentes” e, o que também interessava, “uma relação com os animais fatalmente distinta”: “Antes de trabalhar na manutenção de um parque de auto-caravanas, o Bob passou muitos anos em projectos de conservação da natureza. O Sérgio andou com um circo, teve aquela história com a rapariga das cobras, e depois matou perus na Bernardo.” 

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Naturalmente, o corpo impôs-se num espectáculo que, por causa das assimetrias no domínio da língua, nunca teria podido depender exclusivamente do texto. Mas impôs-se também porque “a própria morfologia de cada um diz muito acerca do que foram estas vidas”, aponta o encenador, “basta olhar para a diferença entre a Carmo e o Bob”: ela pequena e densa, os músculos deixados a amolecer à sua sorte desde a reforma antecipada, ele esguio e frágil (“como uma folha”, de facto), as bochechas mirradas praticamente coladas aos maxilares sem dentes. Estes corpos contam desamores, internamentos em unidades psiquiátricas, suicídios falhados. Duas gravidezes, anos a fio no Colégio Militar, uma nova vida a dar aulas de zumba. E contam uma crise. Não apenas porque Marco Martins a tenha querido contar, mas porque ela estava lá: há uma diferença entre a poesia destas vidas e a sua pornografia. “Não gosto daqueles espectáculos comunitários em que cada um vai lá lamentar-se como se fosse o café do bairro organizado em forma de palco. Talvez venha daí a minha obsessão de levar isto para um lado que se sobreponha ao testemunho. Na verdade, quando lhes peço para me contarem as suas histórias, dou por mim a interessar-me sempre pelas coisas mais poéticas, não pelas mais gráficas. E depois esforço-me por encontrar uma zona em que o intérprete sinta que o que está a contar é importante e significativo não só para mim mas também para ele. É muito complicado. E muito delicado. Queres sempre saber mais acerca destas pessoas. A realidade nunca deixa de estar à flor da pele porque aqui tudo muda diariamente de uma forma drástica — é isso que torna Great Yarmouth tão apaixonante.” 

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Great Yarmouth. Uma sucessão de casas de máquinas com nomes flamejantes (Caesar Palace, Silver Flipper, Flamingo, Circus Circus, Golden Nugget, The Mint, Gold Rush, Leisure Island), e no fim o bingo dos anos 60 em que dois cartões só custam dez pence. Um pub de esquina onde se chega ao fim da tarde para comer caracóis e ver reality-shows da TVI. Hotéis que agora são residências para seniores de classe média-baixa porque o clima aqui é o melhor de toda a ilha — mesmo com esta ventania. 

Um esloveno grande e volumoso que chegou para ser catering manager de uma rede de casinos e acabou a fazer voluntariado no centro de refugiados local, entre 1001 outras actividades comunitárias, porque quando regressou ao lugar onde nasceu percebeu que os amigos casaram/emigraram/morreram e ele passou a ser um estranho: Ivan, que ainda hoje não entende como é que Marco Martins o quis no elenco final (dos 15 participantes do último workshop foram escolhidos apenas nove), se havia “pessoas mais profissionais” e ele nem sequer pode dar um passo sem as muletas. 

Uma portuguesa de Sintra que há 15 anos, “por causa de um amor proibido e de um capricho que se tornou um pesadelo” (“Eu achava que a vida lá fora era um mar de rosas, não um dia-a-dia árduo de desgaste físico e psicológico”), respondeu a um anúncio e se viu a esquartejar perus de noite e a dormir em quartos de pensão partilhados de dia (ou foi ao contrário?): Carmo, que em Provisional Figures representa “a fábrica em si e o que a maior parte da imigração portuguesa viveu” e que desde os ensaios, diz-nos o filho de 22 anos, atende o telefone com outra voz.

Um inglês da cidade grande mais próxima que só veio a Great Yarmouth beber uma cerveja com a irmã e ficou a fazer uma peça de teatro com “oito completos estranhos”: Richard, um trabalhador da construção civil que precisou de se expor no palco para “fechar um capítulo” pessoal que mete uma tatuagem e uma ex-mulher, e que daqui só sai ou para o próximo filme de Marco Martins (“Seria fantástico, seria o ideal”) ou para o Sul da Europa, onde pretende abrir um parque de campismo para motoqueiros com a nova namorada.

Uma descendente de cabo-verdianos que saiu de Oeiras para se juntar ao irmão em Londres e que ao fim de dez anos “daquela vida agitada” desembarcou em Great Yarmouth para umas férias e decidiu ficar, por causa do sol e de uma certa vida portuguesa que encontrou nos cafés e nos minimercados: Ana, a agitadora local, que fundou uma associação de dança comunitária, a Afrolusa, e entretanto abriu o seu próprio negócio de aulas de zumba.

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A presença portuguesa é vistosa e contraria os ritmos naturais de uma cidade marcada pela sazonalidade: fora da época alta, toda a parafernália de entretenimento da marginal parece inútil

O filho de um guarda-costeiro que cresceu junto ao rio, a apanhar boleias dos barcos-piloto, quando ainda não havia estrangeiros em Great Yarmouth a não ser a rapariga asiática da escola e “o chinês do take-away”: Bob, uma cabeça tão extraordinária e tão disponível para tudo (“Nunca deves deixar de aprender, é fixe fazeres coisas que nunca fizeste antes: expandem-te como pessoa”) que na vida já estudou as migrações das salamandras, já tratou sozinho dos oito hectares de uma reserva ornitológica, já consertou telhados, e agora é um intérprete em digressão internacional.

Um moçambicano que o pai meteu com dez anos num avião para Lisboa, direcção Colégio Militar, “para dar um futuro ao puto”, e que depois de reprovar no último ano veio parar a Inglaterra, onde entre outros expedientes limpou o chão da Bernard Matthews (bem menos mau “do que tirar as tripas ou estar no deboning”): Pedro, que entretanto descobriu que numa cidade onde “as pessoas vêm morrer” — “descansar em paz, era assim que eu devia ter dito” — podia ganhar a vida a cuidar de idosos e deficientes, pelo menos “se não der certo andar pelo mundo como rapper”. 

Um inglês que aos 12 anos veio com os pais abrir um hotel em Great Yarmouth e depois se entusiasmou quando regressou, já adulto, “com a quantidade de imigrantes”: Peter, que não sabia se ia conseguir conseguir levar Provisional Figures até ao fim porque quando chegou aos ensaios vinha de “uma série de problemas pessoais” que lhe deixaram “a auto-confiança muito em baixo”, e depois ainda passou por “uma ruptura amorosa”.

Um português de olhos azuis e rosto de actor de cinema que ainda sabe de cor todos os transportes que teve de apanhar para se mudar de Bristol, onde rebentou duas hérnias inguinais a levantar tabuleiros industriais de molhos de lasanha, para Great Yarmouth, onde trabalhou 15 anos na Bernardo até “um acidente na sanitation” o deixar incapaz: Sérgio, para quem todos os dias são iguais, “um cafezito” de manhã, “uma volta até ao shopping para ver as lojas de uma libra” pela tarde, “um copito” no Galante ao cair da noite.

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Uma ex-Miss Great Yarmouth que nos últimos meses, “em vez de continuar sentada ao sol no jardim a detestar a vida por ter fodido tudo com as drogas”, teve um trabalho, coisa que já não lhe acontecia há nove anos: Victoria, a quem este espectáculo deu “uma razão para viver”.

Ivan, Carmo, Richard, Ana, Bob, Pedro, Peter, Sérgio, Victoria. Também conhecidos por Great Yarmouth. 

O Ípsilon viajou a convite do Teatro Municipal do Porto e do Teatro Maria Matos

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