Tribos isoladas: é tão perigoso achar que são selvagens como que são puras

A curiosidade e os mitos são uma ameaça para os povos isolados, seja por turistas em “safaris humanos”, seja por missionários a tentar chegar ao que vêem como o último recanto “selvagem”.

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Reuters/Handout

As tribos isoladas são fontes de inesgotável curiosidade, de admiração pelo exótico, e de falsas ideias feitas. Se nenhuma tribo é igual a outra – por vezes até na mesma região há muitas diferenças entre tribos – seja na Amazónia ou no mar de Andamão, a maioria destas tribos tem algo em comum: têm consciência de que há um mundo diferente à sua volta, já viram barcos ou aviões ou helicópteros, e… não querem contacto com este mundo.

A questão foi debatida após a morte do missionário norte-americano John Allen Chau, que terá sido atingido por uma seta depois de tentar repetidamente entrar na ilha Sentinela do Norte, no mar de Andamão, em Novembro. A tribo dos sentinelas tem deixado claro há décadas que se quer manter isolada, e o facto de viver numa ilha do tamanho de Manhattan, assim como a política de não-contacto da Índia, responsável pelo território, ajudará a que se mantenham assim. As autoridades indianas proíbem todas as aproximações à ilha.

A tribo terá tido provavelmente vários contactos anteriores com o mundo não indígena. O primeiro contacto registado data dos anos 1880, quando o oficial britânico Maurice Vidal Portman liderou uma expedição à ilha. Os membros da tribo esconderam-se e durante dias os membros da missão de Portman encontraram apenas aldeias abandonadas e caminhos. Até que um dia capturaram um casal mais velho e quatro crianças.

Pouco depois de chegar à ilha mais próxima, o casal adoeceu e morreu, e as crianças adoeceram. Foram enviadas de volta com presentes, mas ninguém sabe o que aconteceu, se tinham alguma doença infecciosa que possam ter transmitido aos outros elementos da tribo.

“Todos os processos de contacto implicaram mortes, e em escala que punham em causa a sobrevivência da tribo”, sublinha a antropóloga Susana Matos Viegas, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS), por telefone, ao PÚBLICO, falando das tribos isoladas em geral. “O primeiro problema do contacto é o perigo de epidemias, já que qualquer contacto aparentemente inócuo pode implicar a morte de um número muito substancial de pessoas.”

Expedições amigáveis e distribuição de presentes feitas nos anos 1980, quer às tribos da Amazónia, quer às do arquipélago Andamão e Nicobar, foram levadas a cabo com uma série de cuidados. “Algo que os missionários ou os turistas aventureiros não têm”, diz a antropóloga.

E mesmo apesar destes cuidados, nessas missões morreram muitos índios. “Há muitos casos nas últimas décadas, especialmente no Brasil e no Peru”, diz a Survival International, organização que faz campanha pelas tribos. “Por exemplo os Nahua, no Peru, sofreram mais de 50% de mortes nos anos 1980 a seguir ao contacto.”

Além das doenças, houve vários casos em que membros da tribo acabaram escravizados, fosse em tempos mais antigos por piratas malaios, birmaneses ou chineses ou, mais tarde, por colonialistas britânicos no caso das ilhas Andamão, fosse por colonialistas portugueses ou exploradores de borracha no caso da Amazónia. A informação sobre o perigo será passada oralmente de geração em geração.

Antropólogo na ribalta

O caso de John Allen Chau trouxe para a ribalta um frágil antropólogo indiano, T.N. Pandit, que tem sido ouvido por vários jornalistas em Bombaim. Pandit foi o líder de uma missão que, em 1991, conseguiu contacto amigável com a tribo sentinela em Andamão – a única.

Pausadamente, Pandit conta como foram precisos anos e anos de aproximações, sublinhando que estas foram sempre feitas nos termos da tribo.

Os seus membros sinalizavam desagrado quando não queriam mais proximidade, mas não agressividade, sublinha. Por exemplo, aproximaram-se sem armas dos visitantes para receber cocos (que não existem na ilha) mas sempre dentro de água. Os sentinelas não quiseram que os antropólogos chegassem a terra, e estes não tentaram.

Desde então, a Índia desistiu destas missões e estabeleceu uma política de não-contacto, e a tribo manteve-se isolada. Em 2006, dois pescadores aproximaram-se demasiado e pernoitaram no barco ao largo da ilha – foram mortos pelos membros da tribo. Desde então criou-se, e repete-se, um mito de que os membros da tribo teriam deixado os corpos dos pescadores em paus de bambu para serem vistos.

Sophie Grig, especialista nas ilhas Andamão da ONG Survival International, disse ao PÚBLICO por email que nunca teve confirmação deste acontecimento e que este é, provavelmente um de “muitos mitos estranhos e histórias sobre estas tribos, como que os jarawa têm saliva venenosa, o que é obviamente um disparate”.

Um piloto de helicóptero que liderou na altura uma expedição para tentar recuperar os corpos dos pescadores também não relatou nada do género. Pravin Gaur foi recentemente entrevistado sobre esta tentativa: conta que aterrou na ilha e passado um pouco a tripulação de quatro pessoas ficou sob ataque dos membros da tribo.

Ainda conseguiram ver os corpos dos pescadores enterrados mas não os conseguiram recuperar. Quanto ao número de indígenas que viu, o piloto não conseguiu ser muito exacto (actualmente não se sabe quantos membros terá a tribo, as estimativas variam muito): “Talvez mais de cem”, disse Gaur. “Não conseguir contar, não se consegue contar quando se está numa situação daquelas a tentar salvar as vidas das pessoas [da equipa]”.

As autoridades indianas ainda não comunicaram se desistiram de tentar recuperar o corpo do missionário morto em Novembro.

Uma pequena missão de reconhecimento deparou logo com membros da tribo alerta na praia. Uma carta aberta de uma série de antropólogos pediu que não fossem levadas a cabo missões violentas. Pandit não vai tão longe, mas aconselha prudência, uma pequena missão com presentes, uma tentativa suave. Se não resultar, então, não aconselha insistência.

"Safaris humanos"

Pandit tem ainda a experiência de uma tribo próxima dos sentinelas que depois de anos de recusa de contacto, resolveu aproximar-se. O que aconteceu aos jarawas foi que acabaram por, apesar de serem alvo de algumas protecções e terem terreno para si, se tornaram uma atracção turística para “safaris humanos”.

Vivem numa ilha maior onde o seu território é atravessado por uma estrada, e essa estrada tem filas, todos os dias, de turistas que os querem vislumbrar. Além disso, disputam os recursos locais com os outros habitantes, o seu número tem vindo a diminuir.

Susana Matos Viegas nota que “no Peru há mesmo uma expressão que define o não querer contacto”, e sublinha: “Estas tribos têm meios se quiserem ser contactadas.” Elas sabem que há mundo além da sua terra: vêem os navios e os aviões, usarão aliás metal que encontram vindos de destroços nas suas setas, por exemplo.

Há duas maneiras perigosas de ver estas tribos, diz Susana Matos Viegas: uma negativa, em que são consideradas como mais primitivas (e nós melhores e mais desenvolvidos), e outra a de uma nostalgia romântica, em que são idealizadas como algo puro, que só interessa enquanto se mantiver assim.

Poderá ser também isso que deixa os turistas encantados, diz a antropóloga. De qualquer modo, “ambas as ideias são perigosas e cegam-nos à grande variedade humana.”

Apesar do seu isolamento e de não dependerem do mundo capitalista, estas tribos “vivem no mesmo mundo que nós e são susceptíveis a mudanças como as alterações climáticas, que têm obrigado a adaptações e mudanças mesmo em comunidades com um modo de vida muito tradicional”, sublinha.

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