Viajando com um hippie fascista

Nestas conversas gosto de perguntar e gosto de ouvir. Não há muito mais a fazer, porque o teórico da conspiração não consegue ouvir os outros, e por outro lado aprende-se mais assim, embora o que se aprende seja inquietante.

Boston, Massachusetts, EUA. - Sugerem-se geralmente duas alternativas para quem está sujeito a ouvir teorias da conspiração no seu dia-a-dia. A primeira hipótese é tentar refutar. A segunda é não dar importância.

A minha alternativa não é nenhuma dessas. Quando me é dada a possibilidade de ouvir alguém expor uma teoria da conspiração - ou mais, porque uma nunca vem só - ouço avidamente.

Por razões que não vêm ao caso, passei recentemente uma hora e meia em amena cavaqueira com um simpático sujeito, imigrante nos EUA, pai de três filhos e marido extremoso, que era também uma fonte inesgotável de teorias da conspiração sobre os EUA, a Europa (onde tinha vivido), o Brasil (seu país de origem), Portugal e o mundo.

Quem acredita numa teoria da conspiração não pode acreditar numa só teoria da conspiração. Precisa de várias, porque uma só seria implausível; são as teorias da conspiração em rede que explicam cada uma das teorias da conspiração indivualmente. No interior de cada uma das teorias estão os factos falsos, meio-falsos, ou verdadeiros mas incorretamente contextualizados. E acima de tudo isto está uma visão do mundo inteira, uma fé difusa que integra e justifica os elementos separados.

Assim, para o meu interlocutor era certo que os muçulmanos estavam prestes a expulsar os europeus da Europa. Os números de muçulmanos na Europa, para ele, não andavam bem abaixo dos dez por cento, como no mundo real, mas estavam mais perto da metade da população e seriam avassaladores dentro de uma década. Quem estava por detrás dos muçulmanos era George Soros, o bilionário e filantropo liberal que o meu interlocutor verberava por ser judeu e, pelos vistos, também pró-muçulmano. O mesmo George Soros, apesar de ter fugido ao comunismo na Hungria, estava também por detrás da tentativa de transformar o Brasil numa Venezuela comunista. Daí a corrupção no Brasil e o facto de todos os dirigentes do PT serem multimilionários. Todos? Mas não era só o famoso triplex onde Lula não chegou a morar? Não, eles no PT estão todos multimilionários. Então e o Bolsonaro? Tenho alguma esperança, mas não muita, porque o Brasil precisa de uma guerra civil e ele não vai ter coragem para a matança necessária.

Houve mais, é claro, muito mais. Sobre coisas fantásticas e sobre coisas normais — os filhos, a família, a comida, os bons amigos que ficaram em Portugal. A certa altura a conversa voltou-se para as profissões de cada um. O meu interlocutor tinha sido fisioterapeuta e acreditava em energias alternativas. Por momento, ele soou como um hippie esquerdista e não como um hippie fascista. E eu? Sou historiador, respondi. Ah sim, historiador! E que acha sobre a queda do Império Romano? Tudo gay, não era? — respondeu ele à sua própria pergunta. Tudo gay? Isso não é um pouco exagerado? — interroguei. Claro que não! Se não era tudo gay como é que se explica que o Império Romano tenha caído?

Como disse, nestas conversas gosto de perguntar e gosto de ouvir. Não há muito mais a fazer, porque o teórico da conspiração não consegue ouvir os outros, e por outro lado aprende-se mais assim, embora o que se aprende seja inquietante. O meu interlocutor tinha ouvido e lido as suas histórias “por aí”. E ele sabia, e eu sabia também, que ele estava longe de ser o único a acreditar em tais coisas. O facto de haver muita gente a acreditar no mesmo só provava, do seu ponto de vista, os factos alternativos. Cada vez mais gente está a abrir os olhos!, dizia ele, enquanto mantinha uma possibilidade de dúvida que apontava para teorias da conspiração ainda mais insondáveis.

A partir de 2016 fizeram-se incontáveis reportagens e comentários acerca de como as supostas elites - as pessoas que vão às universidades e lêem jornais - vivem numa bolha. Os eleitores de Trump - que o meu interlocutor apoiava enfaticamente - seriam por sua vez pessoais normais que viviam no mundo real. E são. Mas não está escrito em lado nenhum que as pessoais normais no mundo real (como todos nós, afinal) não possam ao mesmo viver dentro da sua própria bolha.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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