As crises da União Europeia

Se as crises passadas podem ser consideradas institucionais, a crise actual é endógena e talvez por isso mais difícil de ultrapassar.

Está fora de dúvida de que a União Europeia vive actualmente uma das maiores crises da sua existência que não é a única por que passou. Uma das principais potências europeias, o Reino Unido, abandona a União. E o futuro torna-se incerto. Precisamente aquele país que não quis participar no projecto, quando foi iniciado oficialmente em 1951, com a CECA, Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Nessa altura, como refere Pierre Gerbet em La Construction de L’Europe, o Partido Trabalhista inglês, liderado por Clement Attle, que tinha ganho as eleições aos conservadores de Churchill, em Julho de 1945, estava a implementar as bases de um Estado socialista, com a nacionalização das principais indústrias produtivas, da banca, caminhos-de-ferro, e a criação de um Serviço Nacional de Saúde. Por essa razão, não poderia no seio da Comunidade Europeia, em formação, prosseguir essas políticas, uma vez que o projecto da CECA consistia em pôr em comum as produções do carvão e do aço, actividades centrais da economia de então. Além disso, naquele tempo, anterior à descolonização, o Império Britânico estendia-se por todos os continentes, o que conferia um estatuto diferenciado ao Reino Unido. Mais tarde, com o regresso dos conservadores ao poder em fins de 1951, e o abandono do projecto socialista, de que só ficou o Serviço Nacional de Saúde, a intensificação do clima de guerra fria, entre a União Soviética e o Ocidente, propiciaram a abertura de um outro caminho. O Reino Unido, entretanto, tinha começado a desembaraçar-se das suas colónias, com a independência da Índia em 1947, da Birmânia e do Sri Lanka no ano seguinte e, a partir de 1949, implementara um novo fôlego à Commonwealth, fundada muito tempo antes, outorgando benefícios especiais no comércio aos territórios que a constituem. Que mais tarde lhe trariam dificuldades quando decidiu candidatar-se pela primeira vez à Comunidade Económica Europeia em 1961, por iniciativa do primeiro--ministro conservador Harold Macmillan.

Embora se possa dizer que o Reino Unido esteve sempre em crise na sua relação com a Comunidade Europeia, como um casamento que correu mal desde o início, o “Brexit” não é mais do que, finalmente, o divórcio esperado e ansiado por ambas as partes. Porque perante um Estado-membro que se opunha sistematicamente a todos os avanços na integração europeia, adivinhava-se que o fim da relação poderia ser este. Foi para o Reino Unido que se inventaram os opt-out, ou seja, a isenção de certas políticas de integração, como Schengen ou o euro, que outros países passaram igualmente a aproveitar. Mas a crise vem de antes da adesão, quando o general De Gaulle veta por duas vezes os pedidos de entrada, como o já referido em 1961, e em 1963, desta vez pelo primeiro-ministro trabalhista Harold Wilson, com o argumento de que os britânicos são o “cavalo de Tróia “ dos americanos. É o tempo da saída da França do comando militar da NATO em 1966, o que obriga esta organização, rapidamente, a fazer as malas e transferir-se de Fontainebleau, nos arredores de Paris, para Bruxelas. De Gaulle intenta uma terceira via na disputa entre União Soviética e Estados Unidos, com este país a intensificar a sua intervenção na guerra do Vietname, onde chega a ter mais de 500 mil soldados, utilizando armas químicas e ponderando o emprego de armas atómicas, a pedido do general Westmoreland. De Gaulle critica a intervenção americana, assim como a sua política de sistemática interferência nos assuntos internos dos países da América Latina e ousa mesmo ir pessoalmente ao Canadá francófono e na sua maior cidade, Montréal, proclamar Vive le Québec libre. Esta actuação só veio a terminar com o desgaste do general devido aos acontecimentos revolucionários de Maio de 1968 e a sua inesperada demissão um ano mais tarde, perante o resultado negativo de um referendo que tinha proposto sobre um assunto de menor importância. O antigo primeiro-ministro Georges Pompidou é eleito Presidente da República, De Gaulle morre em Novembro de 1970 e o caminho fica aberto para a adesão do Reino Unido à Comunidade Económica Europeia, que se concretizaria em 1973.

Esta foi a segunda grande crise na Europa comunitária, se relativizarmos a da “cadeira vazia”, quando em 1965 o mesmo general e Presidente da República de França deixou o lugar deste país vazio, durante mais de seis meses, no Conselho Europeu, invocando a necessidade do direito de veto nas questões referentes à Política Agrícola Comum que, segundo o Tratado de Roma, fundador da CEE em 1957, deviam ser votadas por simples maioria.

A primeira e mais grave crise, em meu entender, foi, contudo, a que deu origem a este último tratado, antecedido por três anos de paralisia da Comunidade, devido ao chumbo pelo Parlamento francês, em 1954, do Tratado da Comunidade Europeia da Defesa, CED, que tinha sido assinado pelos seis países fundadores da CECA, em 1952, mas devia ser ratificado pelos seus parlamentos. Com efeito, a instâncias dos Estados Unidos, que no seguimento do seu confronto com a União Soviética pretendiam beneficiar do contributo da Alemanha, que quase não tinha sido desnazificada (como confirma Hanna Arendt em 1961 quando assiste e faz um relatório sobre o julgamento de Adolf Eichmann), pretende-se criar uma Europa da Defesa em que participarão contingentes militares alemães. Ora, ao invés dos Estados Unidos, que tinham recuperado muitos quadros nazis, especialmente para os seus serviços de informação, em Inglaterra, por exemplo, temia-se mais o perigo alemão do que a União Soviética, como refere Tony Judt na sua história da Europa. E em França a rejeição é ainda maior, onde está bem viva a lembrança de duas invasões dos exércitos alemães no espaço de uma geração. Além disso, o país está atolado no desastre da Indochina, onde perdeu milhares de soldados na batalha de Dien Bien Phu. O tratado da Europa da Defesa é pois rejeitado e serão precisos três anos para a Comunidade Europeia retomar o seu curso com a fundação da CEE, em 1957.

Se estas crises passadas podem ser consideradas institucionais e derivadas dos desenvolvimentos da política internacional, no tempo da Guerra Fria, a crise actual é endógena e talvez por isso mais difícil de ultrapassar, pois que as dinâmicas associadas são mais lentas. O “Brexit”, como deriva do que atrás foi exposto, é uma consequência directa da sempre periclitante relação com o Reino Unido e poderia acontecer mais tarde ou mais cedo. O que está agora em causa é a solução encontrada para a crise financeira desencadeada a partir de 2008, que se tornou também económica e social, imposta pela Alemanha para salvar os seus interesses financeiros e de mais alguns na Europa. Como Jürgen Habermas reconhece, num artigo no think tank Social Europe de 22 de Outubro passado, não foram tomadas em conta as consequências sociais das soluções para resolver a crise das “dívidas soberanas”, principalmente na Grécia e em Portugal. E a esse propósito, faz agora cinco anos, em 23/11/2013, escrevi aqui que Durão Barroso deveria ter-se demitido de presidente da Comissão Europeia por não ter conseguido reverter uma política que ia absolutamente contra os tratados. O espectáculo indecoroso na Grécia das pessoas, de madrugada, à porta dos bancos, a tentarem levantar 20 euros foi bem demonstrativo. E nos dez anos que então passaram a multiplicação dos partidos de extrema-direita por toda a Europa, e na própria Alemanha, como Habermas também reconhece, foi o corolário dessas políticas, agravadas pelo apoio directo ou indirecto que a União Europeia deu às acções militaristas das potências ocidentais no Médio Oriente. Angela Merkel personifica essas políticas e por isso, ao contrário de Barroso, retirou as devidas consequências com o anúncio da sua demissão política, que só peca por tardia.

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