Brexit: políticos com vestes de juízes no Tribunal de Justiça da União Europeia

A decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre o Brexit em nada beneficia a identificação da população com a União Europeia, nem os mecanismos de governação democrática.

1. Para um bom “tribunal político”, como o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nada melhor do que pronunciar-se às 8h da manhã do dia anterior à votação prevista no Parlamento Britânico para 11 de Dezembro, entretanto adiada. Com este timing, poucas dúvidas restam que está a tentar influenciar a decisão política no Parlamento Britânico sobre o acordo celebrado pelo governo de Theresa May com a União Europeia. Oficialmente, os juízes estão “apenas” a esclarecer, de forma neutra e imparcial, os deputados britânicos sobre as possíveis opções no caso do Brexit. Segundo estes, tais opções incluem também a possibilidade de revogação unilateral de saída da União Europeia: “No seu acórdão de hoje, o Tribunal, reunido em sessão plenária, considera que, quando um Estado-Membro notificou o Conselho Europeu da sua intenção de se retirar da União Europeia, como fez o Reino Unido, esse Estado-Membro é livre de revogar unilateralmente esta notificação.” (ver Tribunal de Justiça da União Europeia, Processo C-621/18, Comunicado de Imprensa n.º 181/2108, 10/10/2018). A sentença já era esperada desde que o advogado-geral, o magistrado espanhol Manuel Campos Sánchez-Bordona, usou similar argumentação, tornada pública a semana passada. (Ver “Quando os juízes fazem política no Brexit in Público, 5/12/2018). Na aparência, há argumentos jurídicos irrepreensíveis. Muitos ingenuamente, e outros de forma bem mais interessada, subscreverão seguramente a tese do TJUE. Na realidade, é mais um caso de jurisprudência política — uma especialidade do TJUE desde os primórdios da Comunidades —, o que à luz da separação dos poderes é, ou deveria ser, uma contradição preocupante.

2. Neste caso judicial/político há também uma grande ironia. O TJUE, o principal criador de um direito supranacional e federalizante nas Comunidades/União Europeia, nunca teve particular consideração pela soberania dos Estados-membros. As suas decisões quase sempre foram no sentido de a transferir (para os mais críticos esvaziando o poder soberano dos Estados), a favor das instituições supranacionais da União. Mas agora a argumentação do TJUE mostra um apego inesperado à soberania dos Estados: “A revogação por um Estado-Membro da notificação da sua intenção de denúncia reflecte uma decisão soberana de manter o estatuto de Estado-Membro da União Europeia.” Agora a soberania estadual parece ser uma coisa boa — o Estado não precisa do consentimento da União Europeia, como defendiam a Comissão e o Conselho — mas, claro, porque isso permite ficar na União Europeia. Se fosse para sair da União, talvez a argumentação do TJUE fosse outra. Talvez a soberania estadual não fosse tão merecedora de consideração. Assim, acrescenta o mesmo Tribunal, “na falta de uma disposição expressa que determine a revogação da notificação da intenção de sair da União, essa revogação está sujeita às regras estabelecidas no artigo 50.º, n.º 1, do Tratado da União Europeia (TUE), pelo que pode ser decidido unilateralmente, de acordo com as regras constitucionais do Estado-Membro em causa.” (Para o texto integral da sentença e o detalhes da argumentação ver TJUE, Case-law of the Court of Justice, Case C-621/18). A força política que os juízes quiseram dar aos partidários da revogação do Brexit — e à eventual realização de um segundo referendo onde essa possibilidade esteja em aberto —, não poderia ser mais (in)disfarçada. É a realização da política por outros meios, onde os protagonistas vestem togas e usam uma impecável fraseologia jurídica.

3. A jurisprudência do TJUE no Brexit não é um acaso único de “invasão” do terreno da política/legislativo pelo judicial. Pelo contrário, o TJUE tem um longo historial nesse tipo de decisões, onde, o que mais chama atenção, é a falta de escrutínio e de reflexão crítica sobre a sua actuação. A falhada Constituição Europeia é um bom exemplo de como uma estrita separação entre o poder legislativo e o poder judicial pode ser habilmente contornada pela jurisprudência. O artigo I-6º na chamada Constituição Europeia (Tratado Constitucional Europeu) estabelecia o seguinte: “A Constituição e o direito adoptado pelas instituições da União, no exercício das competências que lhe são atribuídas, têm primazia sobre o direito dos Estados-Membros.” Mas, como este foi abandonado, por falta de ratificação por todos os Estados-Membros — e esta disposição foi das poucas que não passou para o Tratado de Lisboa —, poderíamos pensar que hoje não é assim, que não há primazia do Direito da União Europeia sobre o direito nacional, incluindo sobre as constituições dos Estados-Membros. Mas isso é uma ingenuidade dos não-juristas, conveniente para certas soluções políticas. Desde os primórdios das Comunidades, pela via jurisprudencial — e com a anuência dos meios jurídicos e judiciais nacionais —, emergiu uma “jurisprudência política” (segundo os próprios “constitucional”). Os juízes do TJUE, desde os anos 1960, criaram uma teoria jurisprudencial da supremacia, ou primado na linguagem jurídica usual, das normas jurídicas europeias sobre as normas nacionais. Mas tal primazia nunca ficou escrita nos Tratados feitos pelos políticos, nem é líquido que essa “solução dos juízes”, sufragada pela maioria dos juristas, tenha o apoio democrático da população. Se tivesse, por que razão não passou para o Tratado de Lisboa?

4. Longe vão os tempos que os juízes se limitavam a ser “a boca que pronuncia as sentenças da lei”. Nos primórdios do constitucionalismo moderno, a separação dos poderes do Estado, entre o legislativo, o executivo e o judicial, foi configurada como um requisito fundamental para evitar a autocracia. No século XVIII, Montesquieu, no “Espírito das Leis”, deu-lhe a sua formulação mais conhecida e influente. “Porém, os juízes de uma nação não são, como dissemos, mais que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem a sua força, nem o seu rigor” / “Mais les juges de la nation ne sont, comme nous avons dit, que la bouche qui prononce les paroles de la loi; des êtres inanimés, qui n’en peuvent modérer ni la force ni la rigueur.” (Ver Montesquieu, De l’Esprit des lois, Livro XI, Capítulo VI, p. 327 (1777 [1748]). Desde as últimas décadas do século XX, assistimos a uma tendência que, de alguma forma, põe em causa a clássica ideia de separação dos poderes do Estado, a qual, historicamente, emergiu como já notado, contra a arbitrariedade no exercício do poder e a sua concentração numa única figura. Essa tendência insere-se naquilo que Ran Hirschl, professor de Ciência Política e de Direito da Universidade de Toronto, no Canadá chamou a “juristocracia” (ver Ran Hirschi, Towards Juristocracy The Origins and Consequences of the New Constitutionalism, Harvard University Press, 2007). É neste contexto que emergem os “tribunais políticos” e os “políticos com vestes de juízes”.

5. Por tudo o que já foi apontado, as decisões do TJUE não podem ser vistas como fundadas apenas em rigorosos cânones profissionais e totalmente apolíticas. (Isto não significa que os seus membros não tenham qualificações e competências técnicas e profissionais elevadas na área jurídica.) As explicações legalistas usuais dos manuais de Direito — e a própria argumentação das sentenças judiciais — querem-nos fazer acreditar que é assim. Mas não é. Como realça Ran Hirschl, os tribunais, sobretudo os que têm características constitucionais, como ocorre com o TJUE, “são, antes de tudo, instituições políticas”. Tal como se verifica com outras instituições estaduais e supranacionais, “não operam num vácuo institucional e ideológico.” (ver “The Judicialization of Politics” in Oxford Handbooks Online, 2013). As suas decisões são também reflexo das escolhas estratégicas e da visão ideológica dos juízes. Mas isto não significa que a judicialização da política deva ser explicada apenas por tribunais que ambicionam aumentar o seu poder e por um “activismo judicial”. Não são a única causa judicialização da política, nem, talvez, a mais importante. Há razões mais profundas como a tendência dos políticos para criarem leis vagas (como acontece com o artigo 50º do TUE), que permitem, também, empurrar a resolução de delicados problemas morais e políticos para o sistema judicial. Nem políticos, nem juízes, são inocentes neste processo que tende a colocar em causa a separação de poderes. Esta decisão do TJUE sobre o Brexit é mais um caso de uma juristocracia — o rosto jurídico da tecnocracia — em interminável expansão. Em nada beneficia a identificação da população com a União Europeia, nem os mecanismos de governação democrática.

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