Os segredos de António Reis e Margarida Cordeiro estão aí para ser descobertos

O Porto/Post/Doc dedicou este ano uma retrospectiva a dois dos cineastas mais falados e menos vistos do cinema português. Em debate, Regina Guimarães, João Pedro Rodrigues, Manuel Mozos e Tiago Baptista falaram de uma obra inesgotável.

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Trás-os-Montes, de 1976 DR

“A 'aura' dos filmes de António Reis e Margarida Cordeiro tem qualquer coisa de religioso, de sagrado”, escreveu António Roma Torres em 1992, após a morte do cineasta. Tiago Baptista, director do Arquivo Nacional de Imagens em Movimento (ANIM), evocou esta passagem durante o debate que o Fórum do Real do Porto/Post/Doc dedicou à obra da dupla, alvo de retrospectiva integral na quinta edição do festival, que teve à sua disposição cópias digitais preparadas pela Cinemateca Portuguesa. E perante as salas cheias que no Rivoli receberam as sessões de Trás-os-Montes, da raridade Painéis do Porto e de Ana (este texto foi escrito antes da exibição de Jaime e Rosa de Areia), Regina Guimarães, escritora e argumentista, mostrou-se feliz: “Senti que havia toda uma geração que tinha sido privada dos filmes do Reis."

A seu lado, na mesa moderada por Alexandra Martins, estavam dois ex-alunos de António Reis na Escola Superior de Teatro e Cinema, dois realizadores veteranos do cinema português: João Pedro Rodrigues (O Fantasma, O Ornitólogo) e Manuel Mozos (Xavier, Ramiro). (A realizadora Marta Mateus, inicialmente prevista no painel, cancelou a sua presença.) Mozos falou por ambos e por todos aqueles que invocam Reis (“o João Pedro, o Pedro Costa, o Vítor Gonçalves, o João Salaviza, o Miguel Gomes, mesmo não tendo sido alunos directos dele”): “É muito bom que aqui se reavalie a obra do António Reis e da Margarida Cordeiro, que eles possam ser discutidos e falados e vistos. E é muito importante que se perceba a importância da sua cinematografia, que os filmes não fiquem nas gavetas do ANIM e da Cinemateca.” Tiago Baptista, a esse respeito, confessou que desde que Trás-os-Montes foi digitalizado em 2016 “a cópia passa mais tempo fora do arquivo do que em arquivo” (mas também que há mais solicitações internacionais do que nacionais).

Como Guimarães apontou, a retrospectiva que o Porto/Post/Doc montou este ano foi para muita gente a primeira oportunidade de ver a obra de Reis/Cordeiro – alguns tê-los-iam visto em VHS antigos ou nas cópias desenrascadas existentes online (Trás-os-Montes existe, por exemplo, numa transcrição de má qualidade no YouTube), a maioria tê-los-á visto pela primeira vez, só os mais velhos terão tido hipótese de os ver em sala. “Aprende-se a ver estes filmes”, notou a escritora, acrescentando que uma visão não chega para que a obra desvende todos os seus segredos. Tiago Baptista regressou ao texto de Roma Torres para dizer que além de “não se darem a ver”, no sentido em que há poucas oportunidades para a sua exibição, são também filmes que “procuram uma relação com o espectador durante a projecção”.

Ver em sala Trás-os-Montes e Ana, podemos afiançar, tem qualquer coisa de sortilégio, de encantamento que transporta o espectador para um mundo que dura o tempo do filme – algo de profundamente telúrico, com os pés bem assentes na terra, mas também de espiritual, como se as montanhas transmontanas projectassem uma aura de tradição ancestral, nem pagã nem religiosa, mas inscrita no tempo. E sempre convidando o espectador a deixar-se levar pelas imagens, mais do que a procurar uma narrativa que na verdade não existe. É a isto, também, que Manuel Mozos se refere ao falar do cinema de Reis/Cordeiro como uma escola – “um legado, um ensinamento de um rigor, de uma exigência, de uma liberdade sobre o que é o cinema”.

De facto, muito do que se fez no cinema produzido entre nós no último meio século deve algo a estes filmes secretos, teimosamente pessoais e intransmissíveis – Reis/Cordeiro “fizeram escola”, mas percorriam também caminhos paralelos com outras duplas do cinema mundial de autor (como Jean-Marie Straub/Danièle Huillet, Yervant Gianikian/Angela Ricci Lucchi, Jean-Luc Godard/Anne-Marie Miéville) e com cineastas seus contemporâneos como João César Monteiro, Paulo Rocha ou Manoel de Oliveira. A esse respeito, Mozos não deixou de apontar o “erro enormérrimo” que é reduzir os filmes da dupla só a António Reis. “São filmes dos dois,” apontou o realizador, que trabalhou na última longa do casal, Rosa de Areia. “Percebi muito bem o que era um trabalho conjunto de duas pessoas. Tenho muita pena que a Margarida não tenha conseguido continuar o projecto que tinham de filmar o Pedro Páramo de Juan Rulfo – infelizmente, como muitas realizadoras, ela teve o problema de não conseguir ver reconhecida a sua autonomia.” Já depois da morte de Reis, Mozos ainda trabalhou nessa tentativa de adaptação para a qual chegou a haver guião e se fizeram repérages no México, mas que nunca se concretizou.

Nenhuma ruga

Os filmes, para já, existem em cópias digitais a cargo do ANIM e da Cinemateca, realizadas a partir dos melhores materiais existentes (Acácio de Almeida, que foi director de fotografia nas longas, supervisionou o trabalho de imagem, embora o facto de Trás-os-Montes e Ana terem sido rodados em 16mm torne inevitáveis algumas questões). Dois “bombons” vêm-se juntar à obra estabelecida (a média Jaime e as três longas), as curtas realizadas nos anos 1960 por Reis com o produtor de filmes turísticos César Guerra Leal: Do Céu ao Rio existe apenas numa cópia já em avançado estado de degradação e encontra-se ainda em fase de restauro; Painéis do Porto, exibido na abertura da retrospectiva, insere “pauzinhos na engrenagem” das curtas institucionais, construindo uma “sinfonia urbana” de irrepreensível gosto estético.

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Painéis do Porto, de 1963 DR

Uma distribuição comercial, em sala ou DVD, não será para já, infelizmente; questões de direitos que exigem negociações delicadas mantêm de momento a obra restrita a festivais e sessões especiais. Mas a editora Tinta-da-China relançou no ano passado a obra poética de António Reis, “despojada, enquanto o seu cinema era muito rigoroso e sumptuoso”, segundo Regina Guimarães, e “injustamente pouco conhecida, mas de grande influência por exemplo em Manuel António Pina”. Para a escritora e argumentista, é possível olhar como um todo para a obra artística de Reis, “mas sobretudo é mais interessante ver o que há de diferente entre uma coisa e outra”. E evocou a dimensão musical de um cinema que estava, mesmo na sua época, à frente do seu tempo. “No Jaime, ele mistura Stockhausen e Telemann. Naquela altura, era algo de muito arrojado!”

“O que o António Reis me ensinou nunca me abandonou,” rematou João Pedro Rodrigues. “Mas precisei de tempo para os seus ensinamentos sedimentarem.” À imagem do cinema de António Reis e Margarida Cordeiro – que não ganhou uma ruga, e continua a revelar segredos.

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