A Ninfa do Tejo de Alessandro Scarlatti ressuscitada pela Metropolitana

A cantata que o cardeal Nuno da Cunha encomendou ao compositor em 1721 em Roma terá este sábado a sua estreia moderna no Museu Nacional de Arte Antiga após 300 anos de esquecimento.

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O compositor Alessandro Scarlatti DR

Entre as numerosas acções de mecenato promovidas pelos agentes diplomáticos de D. João V em Roma, no âmbito de uma ambiciosa política de representação de poder perante a Santa Sé, encontra-se a apresentação em 1721 da cantata (ou serenata) La Ninfa del Tago, de Alessandro Scarlatti (1660-1725), na sumptuosa residência do cardeal D. Nuno da Cunha e Ataíde (1665-1750). Esta obra para três vozes solistas e orquestra terá a sua estreia moderna este sábado, às 21h, no Museu Nacional de Arte Antiga, pela Orquestra Metropolitana de Lisboa e pelas cantoras Mariana Castello-Branco, Ana Sofia Ventura (sopranos) e Cátia Moreso (meio-soprano), sob a direcção do violinista e maestro Enrico Onofri, figura de referência na interpretação da música barroca que tem estabelecido diversas colaborações com Portugal. O programa da primeira parte (com repetição no domingo, às 18h, no Pavilhão Paz e Amizade, em Loures) inclui concertos de Natal de Locatelli (op.1, nº8) e Manfredini (op. 3, nº12, Pastorale per il santissimo natale) e a Abertura (Suite) TWV 55:D18, de Telemann.

Enrico Onofri considera que Alessandro Scarlatti “é ainda pouco interpretado nas salas de concerto”, o que “contrasta com a fama que teve na sua época e com a influência que a sua música exerceu nos compositores sucessivos”. Sempre o fascinou “a mestria deste compositor ao combinar a perfeição do contraponto com a mais fina expressão e elegância”, pelo que acolheu com entusiasmo “o projecto da ressurreição” de A Ninfa do Tejo. Sucede que, para corresponder à encomenda do cardeal, Scarlatti recuperou uma outra cantata composta em Nápoles anos antes: Filli, Clori e Tirsi, editada pelo musicólogo Thomas Griffin. A partitura de A Ninfa do Tejo perdeu-se, mas os libretos são muito parecidos. As personagens são as mesmas, só que na versão patrocinada pelo cardeal português há alusões directas a D. João V e ao rio Tejo. O rio Volturno e a Parténope (ou seja Nápoles) do libreto inicial convertem-se no Tejo e no Tibre, portanto em Roma e Lisboa. A metáfora dos rios e do poder real era recorrente nas cantatas e serenatas de corte do século XVIII. A partir destes dados, o musicólogo Luca Della Libera realizou uma nova transcrição musical com as adaptações necessárias. Este especialista em Alessandro Scarlatti e na música sacra romana dará aliás uma conferência antes do concerto, pelas 20h.

De compositores para cardeais

Os cardeais Nuno da Cunha e Ataíde e José Pereira de Lacerda viajaram para Roma em 1721, o ano do conclave que se seguiu à morte do papa Clemente XI, no qual foi eleito Michelangelo Conti (Inocêncio XIII), que tinha sido núncio apostólico em Portugal. Poucos anos antes, a Capela Real de Lisboa tinha sido elevada ao estatuto de Capela Patriarcal (1716), o que levou à contratação de vários músicos italianos (entre os quais Domenico Scarlatti, filho de Alessandro) e à importação maciça de repertórios, manuais litúrgicos e obras de arte romanas. Por outro lado, compositores portugueses como Francisco António de Almeida, João Rodrigues Esteves e António Teixeira foram estudar para Roma a expensas da corte. É frequentemente referida como tendo sido crucial a este processo a acção de embaixadores como Rodrigo Anes de Sá Menezes (Marquês de Fontes) e André de Melo e Castro (Conde de Galveias), mas é menos conhecido o contributo dos cardeais nas relações musicais entre Roma e Lisboa.

O esplendor e a magnificência eram atributos dos cardeais na Roma barroca. O protocolo exigia a sua presença em cerimónias religiosas e eventos públicos, mas também em actividades literárias, musicais ou teatrais. Os dois cardeais portugueses não conseguiram chegar a tempo do conclave, mas tal não impediu a sua missão de representação. Cada um levava 400 mil cruzados em barras de ouro e moedas, dadas por D. João V para despesas e mecenato. Nuno da Cunha, personalidade controversa, já que foi Grande Inquisidor de Portugal, alugou em Junho de 1721 o Palácio Mancini , que mais tarde viria a ser a sede da Academia de França em Roma. Foi nos salões deste palácio que foi interpretada A Ninfa do Tejo.

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Cunha e Pereira foram promotores e dedicatários de obras musicais apresentadas nas suas residências e noutros locais (como as igrejas de Santa Anastácia, Santa Susana e Santo António dos Portugueses, o Colégio Romano, o Colégio Clementino e o Teatro Capranica). Entre os compositores envolvidos estavam Alessandro Scarlatti, Carlo Cesarini, Francesco Gasparini, Giuseppe Orlandini e Giuseppe Amadori e nalguns espectáculos participaram cantores como os castrati Pasqualino Betti e Girolamo Bartoluzzi e arquitectos e cenógrafos como Francesco Bibiena e Giovanni Pannini.

As partituras da maior parte das obras perderam-se, pelo que a A Ninfa do Tejo é um caso excepcional. A uma Sinfonia de abertura, sucedem-se recitativos (quase todos acompanhados pelo baixo contínuo) que alternam com 12 árias, dois duetos e um terceto, bem ilustrativos da arte de Alessadro Scarlatti na expressão dos affetti barrocos e no engenhoso tratamento de uma ampla variedade de material musical. Destinada a celebrar o dia onomástico de D. João V, uma tradição também seguida na corte de Lisboa por iniciativa da rainha D. Maria Ana de Áustria, A Ninfa do Tejo tanto poderá ter sido interpretada a 24 de Junho (dia de São João Baptista) como a 27 de Dezembro (dia de São João Evangelista). Os periódicos romanos apontam mais para a segunda hipótese, já que o Diario Ordinario de 10 de Janeiro de 1722 refere uma Cantata da scelti Musici apresentada no palácio do cardeal da Cunha a 29 de Dezembro, à qual assistiram 18 cardeais e muitos aristocratas romanos e estrangeiros, bem como o pagamento de avultadas quantias aos músicos, incluindo 200 escudos romanos ao compositor Alessandro Scarlatti.

Poucos meses antes, outra criação de Alessandro — a pastorale La virtù negli amori — tinha sido apresentada no Teatro Capranica, sob o patrocínio do embaixador André de Melo e Castro. No Carnaval de 1722, subia à cena no mesmo teatro a ópera Arminio, também de Alessandro Scarlatti, com dedicatória a Nuno da Cunha. Um curioso episódio relatado pelo jesuíta Manuel Campos testemunha também o vínculo entre o compositor e o cardeal. Numa carta de 1722 enviada de Roma, que se guarda na Torre do Tombo, Campos diz que foi visitar o cardeal da Cunha e encontrou na sala “o célebre Escarlata [Scarlatti]”. Depois de ter recebido uma propina para comprar tabaco e de o compositor lhe ter dado uma receita para a dor de dentes, o jesuíta aproveitou para comunicar a Alessandro o sucesso obtido pelo “Te Deum [a quatro coros] do seu filho” Domenico, interpretado em Dezembro na Igreja de São Roque de Lisboa.

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