Gabriella Cristiani, que tratava Bertolucci por Bernardo: "Era genial como pessoa e como artista”

Montadora dos principais filmes do cineasta e vencedora de um Óscar por O Último Imperador, a italiana Gabriella Cristiani diz que Bertolucci era "um espírito grande".

Foto
Gabriella Cristiani entre os oscarizados por O Último Imperador John Barr/Liaison/Getty Images

“Era uma satisfação enorme trabalhar com ele, um desafiante prazer, claro, mas é isso que se espera de um espírito grande, e ele era-o”, diz a italiana Gabriella Cristiani, 69 anos, que montou vários filmes de Bernardo Bertolucci (1941-2018), entre eles O Último Imperador (1987), com o qual viria a ganhar, em 1988, o Óscar de Melhor Montagem. Foi em Lisboa, onde actualmente passa longas temporadas, que soube esta segunda-feira da morte do realizador e "grande amigo”, como frisa ao PÚBLICO com emoção, lembrando que falaram pela última vez há duas semanas.

Da primeira vez que se cruzaram é que não se recorda, apesar de até terem vivido na mesma rua, em Roma, nos anos 1960. “Toda a gente se conhecia naquele tempo na indústria do cinema”, explica, aludindo ao período em que Fellini, Rossellini, Antonioni ou o montador Franco Arcalli, que viria a transformar-se no seu mentor, eram as figuras tutelares do meio. “Foram todas essas pessoas que me levaram para o cinema, foi por elas que fui infectada por esse vírus”, afirma, descrevendo que a morte de Bertolucci é “também o fim de uma era”. “Mas os seus filmes haverão de perdurar porque tudo o que ele fez é brilhante e de uma grande generosidade.”

Com mais de 30 anos de carreira no cinema, ao longo dos quais montou mais de 30 filmes, realizou dois documentários e uma longa-metragem de ficção (Mulheres entre o Céu e o Inferno, de 1999, com John Malkovich e Molly Parker), e ainda cantou ou participou como actriz noutros títulos, é essencialmente pela colaboração com Bertolucci que Gabriella Cristiani é reconhecida. “Ele era muito aberto à inovação e eu muito inclinada para ela, por isso dávamo-nos muito bem, acho que ele sempre gostou do meu lado mais intuitivo. O processo de fazer filmes pode ser muito repetitivo, por isso o desafio é sempre como fazer diferente”, diz aquela que é ainda hoje considerada uma das pioneiras na utilização de técnicas digitais na montagem.

Foto

Durante sete anos foi assistente de Franco Arcalli, tendo trabalhado com ele em O Útimo Tango em Paris (1972) ou 1900 (1976). Arcalli morreu quando estava a preparar com Bertolucci La Luna (1979), e a partir daí o cineasta achou que Gabriella "estava mais do que pronta para montar sozinha”. Entre os filmes que fizeram juntos conta-se A Tragédia de um Homem Ridículo (1981), antecipando a aclamação internacional e transversal do realizador.

Em 1998 veio o Óscar, com "aquele que foi provavelmente o filme mais fácil de montar, porque estava tudo lá”. “Tudo o que os meus olhos viam era excelente, foi fácil ir seleccionando no meio de tanta beleza.” O Último Imperador arrecadou nove Óscares; nas fotos de grupo, Gabriella Cristiani é a única mulher . “Nessa noite senti-me a rainha da montagem. Quando se é a única, é assim que nos sentimos. Mas era muito fácil trabalhar nas equipas de Bernardo, fossemos mulheres ou homens, porque havia a mesma procura da arte e da excelência, e quem é que não quer participar disso? O processo era sempre um desafio, mas não era doloroso, era até bastante prazenteiro. Claro que por vezes podíamos discordar, e ele podia ser difícil, mas era também muito inteligente e bondoso, e no fim de contas as coisas eram quase sempre muito simples porque toda a gente caminhava na mesma direcção.”

Em 1990 surgiu Um Chá no Deserto, cujo trabalho de montagem foi muito destacado, pelas novidades digitais introduzidas. Gabriella Cristiani haveria de realizar um documentário à volta desse filme. “Já nessa altura era nítido que só havia uma palavra para descrever Bernardo como pessoa e artista: génio. E hoje, olhando para trás, ainda menos dúvidas tenho. Tudo o que fez é excepcional e de grande exigência para consigo e para os que o rodearam. Só lhe podemos agradecer.”

Sugerir correcção
Comentar