De"notável" a "inócuo": Bernardo Bertolucci visto de Portugal

Os cineastas António da Cunha Telles, António-Pedro Vasconcelos, Jorge Silva Melo e Margarida Gil e o crítico António Roma Torres falam da sua relação com a obra e o percurso do realizador italiano. Que, assumem, não foi uma influência particularmente marcante para o cinema português.

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Fotograma de Antes da Revolução DR,DR
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Fotograma de O Conformista DR

É quase unânime a apreciação feita ao percurso de Bernardo Bertolucci (1941-2018) por alguns cineastas portugueses da sua geração: os seus melhores filmes são aqueles que realizou nos primeiros 20 anos de carreira, nomeadamente entre Antes da Revolução (1964), a sua segunda longa-metragem, e a entrada na grande indústria das superproduções internacionais com O Último Imperador (1987) – que, de resto, arrecadaria nove Óscares em Hollywood.

Antes da Revolução, com argumento escrito pelo próprio Bertolucci e Gianni Amico a partir do romance A Cartuxa de Parma, de Stendhal, adaptado à estética do cinema de autor que emergia na Europa nesse início da década de 60, é ainda hoje a principal referência para realizadores como António da Cunha Telles, António-Pedro Vasconcelos, Jorge Silva Melo e Margarida Gil. “Com as ternas memórias de Parma e de Stendhal", o filme – que aos cinemas portugueses chegaria com 12 anos de atraso, só tendo podido estrear já depois do 25 de Abril – deixa ainda hoje a Silva Melo “tantas saudades daquele primeiro Bertolucci, filho dilecto do grande círculo literário de Roma, do pai Attilio, poeta maior, do [Alberto] Moravia romancista”.

Cunha Telles recorda também que esse foi o primeiro filme que viu do realizador italiano, no Festival de Cannes. “Era o espírito de uma época, de um cinema que então começava a fazer o seu caminho e que dava uma imagem muito justa de Itália, quer do ponto de vista social, quer do ponto de vista sentimental”, acrescenta o produtor e realizador que esteve na origem do Cinema Novo português, e que se deixou também encantar por títulos como A Estratégia da Aranha (1970), que ele mesmo distribuiria em Portugal.

Tal como outro filme do mesmo ano, O Conformista (1970), A Estratégia da Aranha ainda tocou o encenador dos Artistas Unidos. "Depois, aquilo ficou inócuo, com Óscares e psicanálise a mais...", lamenta Silva Melo.

Margarida Gil, por sua vez, chegou mais tarde ao cinema de Bertolucci, que só encontrou quando da estreia de O Último Tango em Paris (1972). “Foi em Londres, com o João César [Monteiro], quando o filme estava proibido em Portugal”, recorda a realizadora, notando tê-lo então visto “mais como uma curiosidade”. Viria a conhecer, e a gostar, de outros filmes do cineasta, nomeadamente de A Estratégia da Aranha (1970), onde viu “um humanismo de marca italiana cheio de coisas intrincadas”. Nos anos 90, conheceria pessoalmente Bertolucci no Festival de Taormina: “Era um homem muito belo, consciente da sua imagem, uma figura da Renascença moderna. Mas depois deixou-se encantar com esse papel, e o seu cinema caiu num decorativismo erótico-político”, argumenta.

Também António-Pedro Vasconcelos contactou pela primeira vez com a obra do italiano quando viu O Último Tango em Paris, de que reteve “o lado ridículo” do filme e “as cenas patéticas, principalmente quando Maria Schneider contracena com Jean-Pierre Léaud”.

Depois do sucesso mundial deste filme, tudo parece ter, de facto, mudado no caminho de Bertolucci. É verdade que ainda fez 1900 (1976), “um fresco notável que reflecte o pós-fascismo e os dilemas da Itália do pós-guerra”, nota António Roma Torres, e La Luna (1979), que “eleva o tema do Édipo para lá da psicanálise”, acrescenta este crítico de cinema. E também A Tragédia de um Homem Ridículo (1981), que muitos vêem como o momento alto da primeira fase da obra.

“O Bertolucci era talentoso, mas um bocado rebuscado, maneirista”, nota António-Pedro Vasconcelos, que vê na presença do director de fotografia Vittorio Storaro a razão para esse decorativismo – “ele quer fazer Caravaggio em cada cena”.

O realizador de O Lugar do Morto estabelece, de resto, um paralelismo entre Bertolucci e cineastas como Jean-Luc Godard, Wim Wenders e Pedro Almodóvar, cujas obras, a dada altura, entraram em crise: “Bertolucci e Godard são o reflexo de uma época, mas depois do Maio de 68 e do Vietname ficaram sem objecto”, diz, lembrando o que Fernando Pessoa escreveu sobre os portugueses: “Depois de descobrirem a Índia, ficaram desempregados”.

Contrastando com esta visão, mesmo se concorda que a sua obra se deixou banalizar nas duas últimas décadas, depois de Um Chá no Deserto (1990), Roma Torres considera Bertolucci “um cineasta notável”, e coloca-o ao nível dos grandes nomes do cinema italiano. Mas o crítico e historiador reconhece que ele não influenciou grandemente a geração do Cinema Novo português. Quando muito, diz, estará algo espelhado no filme de Eduardo Geada, A Santa Aliança (1977), uma ficção de militância política sobre a sociedade portuguesa logo a seguir ao 25 de Abril de 74.

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