O Estatuto dos juízes não é só dinheiro

O Estatuto é um complexo de deveres e direitos, que deve ser tratado com harmonia e equilíbrio.

No passado dia 6, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), numa decisão unânime dos 17 juízes que compõem a Grand Chamber, condenou Portugal por violação do princípio do processo justo e equitativo, consagrado no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Uma juíza foi condenada na pena de 240 dias de suspensão de funções sem vencimento, por três infracções disciplinares. No decurso do processo pediu para lhe ser concedida uma audiência pública, mas o Conselho Superior da Magistratura rejeitou o pedido porque o actual Estatuto não prevê essa possibilidade. A juíza recorreu da condenação para o Supremo Tribunal de Justiça, alegando que os factos dados como provados pelo Conselho não eram verdadeiros. Só que o Supremo recusou-se a reapreciar os factos, considerando que essa matéria está fora das suas competências.

A juíza apresentou queixa contra o Estado no TEDH, invocando que a recusa da audiência pública e a impossibilidade de disputar a veracidade dos factos no recurso violaram as regras do processo justo e equitativo. O TEDH deu-lhe razão, confirmando aquilo que os juízes vinham dizendo há muito tempo: a lei não lhes concede os mesmos direitos que concede a qualquer cidadão a quem é instaurado um processo disciplinar no exercício da sua profissão.

Este caso serve para mostrar que é um erro reduzir a discussão pública sobre o Estatuto dos juízes a um problema de salários.

A responsabilização dos juízes pelas faltas deontológicas é matéria de interesse público, essencial para assegurar a confiança na integridade do sistema de justiça. Mas a forma como o Estado exerce o poder disciplinar é também crucial para a protecção da independência judicial. O juiz sujeito a procedimento disciplinar tem direito a ser julgado num processo justo e equitativo. Não só para garantir o respeito pelos seus direitos profissionais, mas sobretudo para impedir actuações disciplinares abusivas, que visem limitar a capacidade de actuação dos tribunais. Basta olhar para a Hungria, a Polónia e a Bulgária (só para citar os casos mais próximos), para ver que uma das formas de minar a independência do poder judicial é precisamente utilizar os processos disciplinares contra juízes com finalidade repressiva e intimidatória.

A necessidade de assegurar o direito a um processo disciplinar justo e equitativo está prevista nos documentos internacionais mais relevantes: Princípios Básicos sobre a Independência Judicial, da ONU, e Recomendação (2010)12 e Carta Europeia sobre o Estatuto dos Juízes, do Conselho da Europa. O Estado português está agora obrigado a cumprir a decisão do TEDH, alterando a lei para assegurar aqueles direitos aos juízes. A oportunidade não podia ser melhor, dado que o Estatuto está em pleno processo de revisão no Parlamento.

Mas não é só nessa parte que as normas do Estatuto têm de ser revisitadas. Por exemplo, está proposta a possibilidade de o CSM expedir instruções convenientes à boa execução e uniformidade do serviço judicial, sob pena de falta disciplinar grave se o juiz não cumprir. Esta norma esdrúxula choca de frente com a seguinte jurisprudência do acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 27 de Fevereiro deste ano (caso ASJP contra o Tribunal de Contas): “o conceito de independência pressupõe, nomeadamente, que a instância em causa exerça as funções jurisdicionais com total autonomia, sem estar submetida a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a quem quer que seja e sem instruções de qualquer origem, e esteja, assim, protegida contra intervenções ou pressões externas susceptíveis de afastar a independência de julgamento dos seus membros e influenciar as suas decisões”.

Nestes tempos conturbados não vai faltar quem queira influenciar a opinião pública dizendo que o diferendo sobre o Estatuto dos juízes é tudo uma questão de dinheiro e salários, como se a independência económica não fosse também essencial para assegurar a independência judicial. É verdade que uma parte importante da controvérsia respeita à violação de compromissos remuneratórios assumidos pelo Estado há muitos anos. Mas os problemas estão longe de terminar aí. O Estatuto é um complexo de deveres e direitos, que deve ser tratado com harmonia e equilíbrio.

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