“Só agora começamos a saber como falar de Manuel António Pina”

Manuel António Pina faria este domingo 75 anos. Homenageado no Porto, na Biblioteca Almeida Garrett, é cada vez mais reconhecido como um autor essencial na poesia portuguesa pós-Pessoa.

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“O Pina é um autor absolutamente gigantesco, e é grande em muitas frentes, e está tudo muito ainda por descobrir e desbravar”, diz o ensaísta Pedro Eiras, um dos oradores do colóquio dedicado a Manuel António Pina que irá decorrer terça-feira, no Porto, integrado nas jornadas Desimaginar o Mundo, um diversificado programa de homenagem ao autor de Todas as Palavras que terá este domingo, dia em que o autor faria 75 anos, o seu momento mais emotivo: Álvaro Magalhães, Germano Silva, João Luiz e Arnaldo Saraiva reunir-se-ão na Biblioteca Almeida Garrett para evocar o amigo comum numa “conversa entre amigos”, e antes disso, no mesmo local, Pedro Mexia, Inês Fonseca Santos e João Paulo Cotrim debaterão uma obra da qual, observa Mexia, “só agora começamos a saber como falar”.

Concebidas pela ensaísta Rita Basílio, autora do livro Manuel António Pina – Uma Pedagogia do Literário (Documenta, 2017) – e pela designer Sónia Rafael, estas jornadas já começaram a cumprir “um dos seus grandes propósitos, que era pôr as pessoas a falar de Manuel António Pina”, congratula-se a primeira, assinalando a colaboração do espaço Mira, de Manuela Monteiro, que convidou 24 fotógrafos a trabalharem sobre poemas de Pina – o resultado pode agora ser visto em duas exposições, uma na estação de metro da Trindade e outra no próprio Mira Forum – e criou ainda no Facebook o grupo Fotografias para o Poeta Manuel António Pina, que teve uma adesão invulgar, tendo recebido num tempo muito curto mais de duas mil imagens inspiradas por poemas do autor.

Um interesse que também mostra que, sobretudo no Porto, onde viveu grande parte da sua vida, Pina é uma figura muito popular e acarinhada, não apenas enquanto poeta, mas também como autor de livros infantis, boa parte deles encenados pelo seu amigo João Luiz no Teatro Pé de Vento, e talvez mais ainda como cronista, arte que praticou durante décadas no Jornal de Notícias, em diferentes formatos, e nos últimos anos a ritmo diário. “Só as suas crónicas são um continente infinito”, nota Pedro Eiras. “Já a poesia não é muito vasta, mas até por isso é menos desculpável o relativo pouco caso que se foi fazendo dela”, acrescenta. “Espero que se faça agora o mais possível: quando se tem uma mina de ouro, não há muita desculpa para não se ir escavar”.

O PÚBLICO ouviu vários dos ensaístas que intervirão terça-feira no colóquio Desimaginar o Mundo — Manuel António Pina (1943-2018), que decorrerá no palacete dos Viscondes de Balsemão, e não deixa de ser significativo o facto de quase todos diversamente sublinharem o facto de só agora, seis anos após a morte de Pina, se começar a passar de algumas precoces intuições certeiras para uma leitura mais substantiva da obra.
 
“É difícil engavetá-lo em qualquer grupo ou tendência”, diz Rita Basílio. “Houve quem notasse muito cedo que a crítica não lhe estava a dar suficiente atenção, como Arnaldo Saraiva, e Eduardo Prado Coelho foi o primeiro a falar de Fernando Pessoa na obra de Pina, tema que só por si dava uma tese de doutoramento, mas ninguém o conseguiu propriamente situar”.

A questão da presença pessoana, a que o próprio Pina alude sibilinamente nos versos iniciais do livro Farewell Happy Fields, evocando o ano de nascimento do poeta da Mensagem – “Entre a minha vida e a minha morte mete-se subitamente/ A Atlética Funerária, Armadores, Casa Fundada em 1888 –, é uma evidência, mas também um problema. “Onde Pessoa diz ‘desimaginar-me’, Pina fala em ‘desimaginar o mundo’, e esse desaparecimento do pronome ‘me’ estabelece uma grande distância no modo como ambos lidam com a questão do sujeito”, argumenta Rita Basílio.

Como os outros críticos e ensaístas com quem o PÚBLICO falou – de Mexia e Eiras a Gustavo Rubim e Rosa Martelo –, Rita Basílio acha que a obra de Pina levanta uma miríade de questões que ainda praticamente não foram afloradas – “veja-se, por exemplo, o tópico da infância, uma questão poética por definição, mas que nele tem um tratamento muito diferente e completamente original” –, mas também não se angustia excessivamente com isso. “Tal como o tempo de Pessoa não estava preparado para ele, e o nosso ainda não sabe dizer ao certo o que é aquela linguagem do Herberto Helder, temos que ter a humildade de reconhecer que os poetas às vezes vêm mesmo à frente”.

“Isto está cheio de gente”

Como muitos leitores, a ensaísta vê duas fases na obra poética de Manuel António Pina, mas propõe uma leitura pessoal daquilo que as distinguiria. “Acho que nos últimos livros, ele se resigna a nunca vir a perceber o que é a Literatura, algo que no início era uma inquietação feroz”. No seu segundo livro, Aquele Que Quer Morrer (1978), o poeta escreve: “Isto está cheio de gente/ falando ao mesmo tempo/ e alguma coisa está fora de isto falando de isto/ e tudo é sabido em qualquer lugar.// (Chamo-lhe Literatura porque não sei o nome de isto)”. É esta inquietação que Rita Basílio vê “mais apaziguada” na sua poesia posterior, na qual “Pina começa a inquietar-se mais com o ‘eu’, o ‘quem’ o ‘o quê’: de quem é este rosto, quem é este intruso?”. Como veremos adiante, Rosa Maria Martelo, que não poderá participar no colóquio, mas ficou de contribuir, tal como Silvina Rodrigues Lopes, Rui Lage ou Joana Matos Frias, para o livro de ensaios sobre Manuel António Pina que dele se espera que venha a resultar, sugere que nesta poesia o "isto" e o "eu" poderão na verdade ser permutáveis.

“Só agora é que estamos a começar a ler Manuel António Pina”, diz Gustavo Rubim, que também não vê com muita preocupação o facto de a sua poesia não ter suscitado ainda um conjunto mais significativo de estudos aprofundados. “A verdade é que a obra, relida, ganha valor à medida que o tempo vai passando e não dá nenhuns sinais de envelhecimento”, ajuíza o ensaísta, acrescentando: “E não vai ficar de certeza como uma dessas obras que são sinal de uma época, como já está a acontecer com a de outros poetas da sua geração”.

Para Rubim, “o que hoje já se percebe é que as duas grandes figuras daquela geração são António Franco Alexandre e Manuel António Pina, e que é muito difícil encontrarmos mais alguma coisa ao mesmo nível”.

Apontando algumas idiossincrasias do discurso de Pina – “formas sintácticas inusuais, formulações estranhas, poemas que são feitos só de perguntas” –, Rubim acha que a sua poesia é ainda marcada pela importância dada à frase, como se esta fosse “a unidade principal, acima do verso”, e vê nessa particularidade um dos aspectos que o distinguem de Pessoa.

Pina “deve ser dos poetas mais conscientes do drama que constitui viver-se constantemente no meio de coisas escritas e de leituras”, diz Rubim. E daí que, sobretudo na sua obra inicial, “o ‘eu’ que aparece nos poemas pareça construir-se a partir de fora, a partir daqueles que ele lê, como se a própria leitura criasse uma espécie de ‘eu’”, argumenta. Dificuldade que "a sua obra enuncia de forma muito original, na poesia e também na literatura infantil, aí recorrendo ao jogo e ao sentido de humor”, defende o ensaísta, para quem Pina “nunca teve essa noção da gravidade permanente da poesia” e revela “uma leveza lúdica, que depois é levada ao extremo nos livros infantis”.

Não tendo assistido por razões de idade à estreia literária de Pina, Pedro Mexia pressente que este deve ter sido recebido como um objecto estranho na poesia portuguesa: “as pessoas devem ter tido dificuldade em arrumá-lo, até porque havia ali coisas que jogavam em sentidos diferentes, um lado mais irónico e outro quase metafísico”. E se o facto de ter começado a ser publicado pela Assírio, e depois a atribuição do prémio Camões, em 2011, lhe vieram dar uma visibilidade que durante muito tempo não teve, a estranheza, essa, só agora começará lentamente a ser, se não dissipada, pelo menos enfrentada: “Li os recentes livros do Rui Lage e da Rita Basílio sobre o Pina e acho que é um poeta que ganha com a análise e elucidação daquelas várias camadas, e isso não é necessariamente verdade para todos”. Numa formulação feliz, Mexia atribui a Pina uma “poesia pensativa”, que o colocaria na descendência de Pessoa.

Chama também a atenção para a circunstância pouco usual de se tratar de um autor “a quem as pessoas chegaram por várias vias”, alvitrando que, “se calhar, até havia poucos leitores simultâneos do poeta, do autor de livros infantis e do cronista”. E conclui com “uma coisa que não interessará para um colóquio literário, mas que gostava de dizer”: “Nunca fui próximo do Pina, mas era uma pessoa amabilíssima, de quem era muito fácil gostar". ?Rosa Martelo também interromperá a conversa para constatar: “Mesmo quem não o conheceu bem, como eu, basta começar a falar dele para ficar logo cheia de saudades”.

“Um pronome à procura do nome”

A ensaísta anda há muito às voltas com a “estranheza” desta poesia, a que todos aludem e, prestando tributo aos ensaios seminais que Américo Lindeza Diogo dedicou ao poeta de Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde, título do seu livro de estreia de 1974, pensa hoje que “o que Pina fez foi pegar num tópico da modernidade, a ideia de um sujeito que é um efeito do texto, e colocar esse sujeito a falar na condição de criador, o que provoca no leitor uma estranheza absoluta”. Mas aceitando-se esta perspectiva, argumenta, “tudo o que esse sujeito diz é lógico e consequente”, e é só quando o confundimos com uma posição autoral, ou até biográfica, que se cria uma espécie de nonsense”.

Assim, sugere Rosa Maria Martelo, “o ‘eu’ que fala na obra de Pina é propriamente o pronome ‘eu’, um pronome à procura de um nome próprio, de alguém que lhe diga respeito, e só depois de se perceber que na sua poesia é o outro que fala sozinho, e é o outro que anda à procura dele, é que tudo começa a bater certo”.

Voltando ao já referido poema em que Pina diz “chamo-lhe Literatura porque não sei o nome de isto”, Rosa Maria Martelo acha que esse “eu” da poesia de Pina é permutável com o “isto”. Ou seja, “esse ‘isto’ que está cheio de gente a falar tanto pode ser a literatura como esse sujeito da escrita também ele cheio de vozes, apanhado naquela torrente de citações e de coisas lidas”, defende. “É isto que dá a Pina uma posição originalíssima, e creio que mesmo única, na poesia portuguesa”.

E se pensa que Pina transformou a herança modernista em algo muito próprio, também não menoriza a presença de Pessoa, lembrando que versos de Pina como “É duro sonhar e ser o sonho,/ falar e ser as palavras!” correspondem a “uma formulação muito pessoana”. E podia acrescentar-se, entre muitos outros, um notável poema do último livro (Como se Desenha Uma Casa, 2011), onde Pina escreve: “Há em todas as coisas uma mais-que-coisa/ fitando-nos como se dissesse: ‘Sou eu’,/ algo que já lá não está ou se perdeu/ antes da coisa, e essa perda é que é a coisa”. Versos que trazem à memória da ensaísta estes outros de um célebre poema de Pessoa, significativamente intitulado Isto: “Tudo o que sonho ou passo,/ O que me falha ou finda,/ É como que um terraço/ Sobre outra coisa ainda./ Essa coisa é que é linda.” 

Mas na poesia de Pina, observa, “estas questões são colocadas muito ao rés da vivência quotidiana, surgem das coisas mais banais, de circunstâncias do dia-a-dia, o que lhes dá uma certa carnalidade, uma espontaneidade afectuosa que a distingue da de Pessoa”.

Pedro Eiras não chega a interromper-se para deixar uma nota algo pessoal, diz logo a abrir que, “para lá de ter sido um poeta magnífico, Pina era uma pessoa excelente, coisas que nem sempre coincidem”. E não seria Pina quem o censuraria por dar prioridade a esse aspecto. “Numa entrevista”, recorda Eiras, “ele diz que não interessam bons poetas, interessam boas pessoas, ele que sabia como ninguém o que é a impessoalidade, diz esta coisa fantástica”. Uma preocupação que, acrescenta, “está lá desde o início, desde o primeiro livro, onde há aquele poema em que pergunta [referindo-se a um funcionário míope que está a atender ao balcão numa repartição pública]: “Que fez algum/ poeta por este senhor?” E vale a pena lembrar os versos seguintes: “E a pergunta/ afligiu-me tanto por dentro e por/ fora da cabeça que tive que voltar a ler/ toda a poesia desde o princípio do mundo”.

Também Eiras acha que só agora estamos verdadeiramente a ler Manuel António Pina, e desde logo por razões que têm que ver com o seu percurso: “apostou em áreas um bocadinho desprezadas: a literatura infantil o teatro, a própria poesia, e esteve brilhantemente em todas essas frentes, mas não são lugares que dêem muito nas vistas”. Mas também, reconhece – e numa assumida mea culpa: “em vida do Pina, só lhe dediquei uma recensão” –, por alguma desatenção dos críticos e académicos. 

Notando que “quando lemos um poema de Pina sabemos logo que é dele”, Eiras coloca-o entre “esses poetas que têm um idiolecto, que inventam uma língua dentro da língua”, uma originalidade que não é contraditória com as suas muitas influências, Pessoa incluído. “É um dos adubos da poesia dele, claro, mas quantos naufragaram nessa navegação, e Pina vai por ali fora, encontra soluções para impasses que Pessoa nunca resolveu”. E as armas que usa, inventaria, “são a ironia, o jogo, a imaginação, ferramentas que para alguns leitores serão menores, mas nele ir por caminhos menores, por géneros menores, não é um problema, é uma solução”. E aqui se aproxima de Rosa Maria Martelo, que observa: “Como qualquer outro poeta, Pina aspirava a escrever grande poesia, e se usava um tom menor, era porque não podia usar outro, e portanto não era menor, era o tom certo”.

Pedro Eiras também reconhece diferenças entre os primeiros livros do poeta e os mais recentes, mas recusa a ideia de uma evolução ascendente. “No Pina, é tudo muito bom, o início, o meio e o fim, é um autor absolutamente maior em tudo o que fez”, declara, antes de deixar uma nota ainda mais inequivocamente pessoal. “Ele era uma espécie de anjo da guarda; podia não o ver, mas saber que ele existia dava realmente um certo consolo”.

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