Como Bolsonaro se tornou "justificável"

É impossível ignorar não só a crispação e polarização dos debates políticos e ideológicos a que hoje assistimos como também a crescente influência das redes sociais na tribalização e histerização desses debates.

Na sua crónica de sábado, Um esclarecimento para Francisco Assis, a propósito da vitória de Bolsonaro, João Miguel Tavares (JMT) contesta uma frase que aqui escrevi no domingo passado: "Se numa semana se diz que ‘um fascista é um fascista’, não é possível passar as semanas seguintes a justificar – e legitimar – a sua existência". Para JMT, "esta frase, proferida como se fosse uma evidência, contém duas falácias. A primeira é que é perfeitamente possível dizer que um fascista é um fascista e, ainda assim, justificar a sua existência – é esse o trabalho de quem escreve num jornal. A segunda falácia é esta: ‘justificar’ nada tem que ver com ‘legitimar’."

A propósito de falácias – ou, já agora, ligeirezas de memória – começo por recordar a frase final da crónica de JMT publicada a 6 de Outubro neste jornal, depois de ter enumerado as razões que o faziam rejeitar Bolsonaro, porque, recordo, "parece fascista, cheira a fascista e fala como um fascista": "Olhar para isto e dizer, com os dedos cruzados, ‘é só uma pose’, parece-me uma jogada estupidamente arriscada. Entre um fascista impoluto e um democrata corrupto, eu escolho o democrata corrupto".

Ora, depois de ter confessado esta opção aparentemente definitiva, JMT ensaiou uma manobra de recuo ao longo das semanas que se seguiram até à previsível eleição de Bolsonaro, justificando o triunfo da extrema-direita no Brasil como uma consequência da corrupção do "lulismo" e da cegueira da esquerda brasileira, protegidas pela complacência acrítica da esquerda internacional (e portuguesa). Ou seja, tendo declarado que preferia um "democrata corrupto" a um "fascista impoluto" (declaração claramente excessiva, até porque nada provava - ou prova - que Haddad fosse "corrupto" e Bolsonaro "impoluto"), JMT passou depois a defender uma posição bem diversa, recusando-se "a colocar o carimbo de cúmplices do fascismo em todos aqueles que não aceitaram escolher entre um e outro".

Permito-me acrescentar: eu também não o faria, embora me tenha chocado a ligeireza com que figuras tão respeitáveis como Fernando Henrique Cardoso se escusaram a tomar posição sobre uma disputa eleitoral onde estava em jogo o futuro da democracia brasileira. Isso explica, aliás, quanto a mim, o quase desaparecimento da direita democrática e do centro político do Brasil nessas eleições.

Quanto às duas falácias de que me acusa JMT, esclareço: uma coisa é explicar (jornalisticamente) os motivos que levaram o eleitorado brasileiro a escolher Bolsonaro e rejeitar o PT – embora este seja hoje a única força política relevante face à extrema-direita –, como julgo ter feito nos textos que escrevi; outra coisa é justificar – e legitimar – esses motivos, como faz JMT, facto tanto mais surpreendente quanto foi ele a assumir de início uma escolha radical, preferindo "um democrata corrupto" a "um fascista impoluto". Que é que o terá levado a mudar ou pelo menos a inflectir a sua opinião – o que nada teria de ilegítimo, diga-se de passagem –, sem se dispor a assumi-lo?

Numa explicação complementar a estas contradições que ultrapassam, de longe, o caso de JMT, é impossível ignorar não só a crispação e polarização dos debates políticos e ideológicos a que hoje assistimos como também a crescente influência das redes sociais na tribalização e histerização desses debates, condicionando as opiniões dos que nelas participam ou cultivam o vedetismo através de constantes intervenções polémicas. Com efeito, o recurso à agitação febril das controvérsias a pretexto dos mais variados assuntos é um dos traços marcantes do chamado debate público actual, onde a efervescência das opiniões e o seu carácter provocatório acabam por impor-se à substância dos temas em discussão. É aliás desse clima que se alimentam o ruído mediático e as fake news hoje tão em voga.

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