Um esclarecimento para Francisco Assis

A minha suposta “legitimação” de Jair Bolsonaro consistiu apenas em defender aqueles que recusaram Haddad por considerarem que o perigo de destruição das instituições brasileiras era superior com a continuação do PT no poder.

No seu último artigo, Francisco Assis faz algumas considerações sobre os textos que eu fui escrevendo sobre as eleições brasileiras. Essas considerações merecem uma resposta, não só porque algumas das suas críticas foram repetidas por outras pessoas, mas também porque elas me permitem repor uma cronologia dos factos que é essencial para clarificar o meu posicionamento sobre Bolsonaro e o aproveitamento do cenário brasileiro para um embate ideológico entre a esquerda e a direita portuguesas.

A crítica que mais ouvi no último mês também foi feita por Vicente Jorge Silva: “Se numa semana se diz que ‘um fascista é um fascista’ não é possível passar as semanas seguintes a justificar – e a legitimar – a sua existência.” Esta frase, proferida como se fosse uma evidência, contém duas falácias. A primeira, é que é perfeitamente possível dizer que um fascista é um fascista e, ainda assim, justificar a sua existência – é esse o trabalho de quem escreve num jornal. A segunda falácia é esta: “justificar” nada tem a ver com “legitimar”.

Aquilo que disse originalmente sobre Bolsonaro, mantenho. Ele “é tão fascista quanto um fascista consegue ser fascista num país democrático” – reclama a imposição violenta da ordem, ataca de forma explícita minorias frágeis, elogia no Parlamento o torturador de Dilma Rousseff, ameaça fuzilar opositores, e mesmo que tudo isto não passe de mera retórica, essa retórica introduz uma violência no discurso político que só por milagre não terá consequências práticas. É evidente que não estamos a falar do fascismo dos anos 30. Mas quando criticamos o comunismo venezuelano também não o estamos a comparar às purgas estalinistas. Convém não fazer duas coisas com as palavras: uma, é usá-las sem qualquer espécie de rigor (“Trump é fascista”); outra, é usá-las com tanto rigor que elas tornam-se inúteis e meras peças de museu (“apenas Hitler e Mussolini são fascistas”).

A minha suposta “legitimação” de Jair Bolsonaro consistiu apenas em defender aqueles que recusaram Haddad por considerarem que o perigo de destruição das instituições brasileiras era superior com a continuação do PT no poder. Ainda que tenha muitas dúvidas acerca da solidez deste argumento, há uma dúvida que não tenho: ele é absolutamente legítimo. Não se trata aqui de defender Bolsonaro, mas sim de defender a posição daqueles que se recusaram a escolher entre um candidato de extrema-direita e o PT. Aquilo que me distingue de Francisco Assis não é a repulsa por Bolsonaro, que partilho. Aquilo que me distingue é que, no caso do Brasil, eu recuso-me a colocar o carimbo de cúmplices do fascismo em todos aqueles que não aceitaram escolher entre um e outro. Porque esta posição, tendo em conta a terrível realidade brasileira, é perfeitamente defensável.

Infelizmente, o que logo apareceu por aí foram os carimbadores profissionais, dispostos a apensar rótulos de fascista em tudo o que mexia. Foi a esses escanções da democracia que perguntei onde estava o seu palato quando andámos seis anos a engolir as práticas autocráticas de José Sócrates. Ao contrário do que Assis afirma, eu não pronunciei qualquer “fatwa definitiva” a quem cooperou com o animal feroz. Todos podemos enganar-nos. Mas aprecio que esses erros sejam reconhecidos, e reclamo um certo pudor quando se põem em causa os pergaminhos democráticos daqueles que durante tanto tempo estiveram do lado certo da barricada democrática em Portugal. Não me parece que seja pedir muito.

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