IVA, touradas e ballet

Sendo o IVA um imposto de base europeia, nem todas as escolhas são permitidas aos Estados-membros.

É costume dizer-se que os impostos são o preço da civilização. Seria isto talvez que a ministra da Cultura tinha em mente ao justificar no Parlamento a decisão de aplicar 13% de IVA às touradas, ao mesmo tempo que admitia repor os 6% para todos os outros espectáculos artísticos. Em recintos fixos ou espaços abertos, ao que parece.

Em 1986, quando se introduziu o IVA, a taxa reduzida valia apenas para a ópera, o ballet, concertos, teatro, circo, revista e cinema, numa mistura de alta cultura e entretenimento popular de que só ficavam excluídos os filmes pornográficos, na salutar tradição do antigo imposto de transacções. Com o passar do tempo, a taxa reduzida alargou-se à generalidade dos espectáculos públicos. E assim estávamos quando o Orçamento do Estado para 2012, no auge da crise, arrastou todos os divertimentos para a taxa normal de 23%, com excepção do canto, dança, música, teatro, cinema, touradas e circo, que foram deixados na taxa intermédia de 13%. A austeridade tem limites.

Governar é fazer escolhas e os impostos têm-nas de sobra. Sendo o IVA um imposto de base europeia, porém, nem todas as escolhas são permitidas aos Estados-membros.

É o direito europeu que fixa as categorias de bens que podem beneficiar de taxas reduzidas. Em decisões variadas, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem admitido que os Estados-membros desagreguem essas categorias e que apliquem as taxas reduzidas a uma parcela apenas dos “produtos alimentares”, das “manifestações desportivas” ou do “transporte de pessoas”. Mas apenas podem fazê-lo na condição de com isso não gerarem uma distorção da concorrência.

O TJUE admitiu assim que a França desagregasse as prestações das agências funerárias, para aplicar taxa reduzida ao transporte dos corpos e taxa normal às cremações ou que a Alemanha desagregasse o fornecimento de água, para aplicar taxa reduzida à ligação aos ramais e taxa normal ao consumo. Afinal de contas, as taxas diferenciadas de IVA dificilmente levarão os consumidores a querer mais transporte de corpos e menos cremações, mais ligações aos ramais e menos consumo de água.

Quando estão em jogo bens como o cinema, a música ou a tourada, o caso muda de figura. Com certeza que estas ofertas não são inteiramente substituíveis e que a ida ao cinema com os miúdos para ver o Frozen não se pode facilmente trocar pela Corrida de Toiros na Chamusca nem o concerto do Ed Sheeran pelo Concurso de Pegas na Azambuja. É certo, ainda assim, que num mercado tão aberto quanto o do entretenimento público, a aplicação de taxas diferenciadas de imposto facilmente pode contribuir para que certas ofertas se tornem mais apetecíveis do que outras, alterando progressivamente as escolhas de empresas e consumidores.

Na verdade, é esta a precisa intenção da ministra da Cultura. A haver um efeito de substituição na procura das corridas de toiros, este não será mero acidente mas o resultado de uma escolha assumida na educação do público consumidor. Ao diferenciar-se pela negativa a taxa de IVA aplicável à tourada, apartando-a dos demais espectáculos artísticos, não apenas se admite como abertamente se pretende que o imposto converta a grande massa aos prazeres mais elevados do teatro experimental e da dança contemporânea. Mergulhados neste ambiente, a distorção da concorrência torna-se um imperativo de civilização.

O que possamos ganhar com estas guerras de cultura é cada vez mais difícil de compreender, olhando ao extremismo que vai fazendo caminho por todo o lado.

Quanto aos aficionados da tauromaquia, esses, parecem ter boa hipótese. Nestas coisas, acontece os Estados-membros escaparem ao exame do Tribunal de Justiça porque a manipulação das taxas do IVA isola grupos muito incoesos de empresas e de consumidores, sem especial ligação nem capacidade de resistência. Mas isto dos toiros é gente de pelo na venta. Encurralados, ninguém os segura.

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