A bolha

Ganhou Bolsonaro, venceu Trump, triunfou Berlusconi outra vez. O seu partido é a retirada do poder público, o seu movimento é a falta de um projecto para o bem comum.

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LUSA/Antonio Lacerda

Quattro chili e duecento grammi!” Ninguém expressa melhor do que Nanni Moretti a desafectação do cidadão comum com a dinâmica política do seu país. “Quattro chili e duecento grammi!”. No meio dos festejos pela vitória de Romano Prodi, e rodeado de uma multidão que agita inúmeras bandeiras vermelhas, o protagonista do filme Aprile grita, absolutamente eufórico, o peso do seu filho. A cena, tão hilariante como brilhante, representa de maneira magistral a ruptura com a política por parte de um cidadão comum que, gradualmente, tem construído a sua própria hierarquia de prioridades.

Seria divertido se não fosse porque, domingo, Jair Bolsonaro ganhou as eleições. Ganhou Bolsonaro, venceu Trump, triunfou Berlusconi outra vez. O novo presidente do Brasil já tinha vencido em Itália, em Estados Unidos, na Hungria e em tantos outros países como o voltará a fazer nas próximas eleições onde não concorrerá porque não lhe faz falta: o seu partido é a retirada do poder público, o seu movimento é a falta de um projecto para o bem comum. Tinha razões Moretti para, esse dia, viver na sua bolha, mas... e nós? No seu livro Construir Povo, Errejón e Mouffe dão algumas respostas sobre como chegámos até aqui. 

Diz o primeiro: “As decisões fundamentais são tomadas em esferas muito afastadas da capacidade de controlo cidadão e por poderes não eleitos. Os representantes são cada vez mais semelhantes entre eles e menos aos seus representados. Na ausência de confronto de ideias e projectos, a democracia languidesce e crescem a renúncia, a desafectação, a crise de representação e a ocupação das instituições por poderes de minorias poderosas.” Responde Mouffe: “O que necessita a política é que algo substancial esteja em jogo e que os cidadãos tenham a possibilidade de escolher entre projectos claramente diferentes.”

Não é simples. Já Moretti, sempre em Aprile, nos tinha alertado contra isto. O mesmo jornalista que escreve sobre desporto numa revista de direita escreve sobre cultura num jornal de esquerda. Mas o problema não é o jornalista, nem a revista, nem o jornal, o problema é que é tudo propriedade da mesma empresa. Itália é um gigantesco e único jornal. Anos antes, em La Palombella Rossa, avisava da necessidade dos partidos, neste caso o PCI, esquecerem-se de que são partidos e tentarem ser ferramentas para a cidadania — e não simples marcas eleitorais. “Que no, que no, que no nos representam” gritavam os indignados em Espanha. Ah pois.  

Ponhamos tudo em perspectiva. Eleições entre coisas que não são diferentes. Uma democracia onde o povo não manda. Esta nossa liberdade numa sociedade onde não temos escolha. Recordo o dia seguinte à vitória de Trump: o horror ao ler as notícias no telemovel, a ida ao café com o medo no corpo e, a seguir, a entrega resignada às minhas tarefas (porque elas são inadiáveis!). O poeta catalão Juan Bufill explica melhor do que eu. “A vida sob o capitalismo é sentir-se sempre assoberbado, é não conseguir fazer tudo, sentir-se culpado por isso, é não compreender porquê o cansaço, e não ganhar suficiente depois de trabalhar demasiado”.

É só? A comunicação social, os partidos ou o sistema económico? Mas... nós, e nós? Hoje será como o dia em que Trump foi eleito. Esconder-nos-emos atrás dos nossos afazeres (das nossas votações na Assembleia da República, das nossas transacções imobiliárias bem sucedidas, das nossas capas de revista de mais um projecto sem arquitectura, dos nossos brilhantes artigos científicos a explicar as razões da gentrificação ou as condições para a participação, das nossas manifestações e dos nossos cartazes). Todos esses são o mesmo esconderijo, como o jornal de Moretti era um gigantesco e único jornal.

E, entretanto, a bolha, ai a bolha. Essa bolha onde não estão os fascistas nem os “ignorantes” que votam neles. Esses estão noutra. A nossa é a nossa bolha e é boa. Essa bolha bonita da nossa cor e com a nossa bandeira. Aquela em que vivemos, em que viveremos até que ela rebente ou seja rebentada por outro. E quando ela rebentar será assustador, e não pelos fascistas que nos governarão e os “ignorantes” que votarão neles, mas sim porque quando a bolha rebentar acordaremos para a vida e aperceber-nos-emos de que, afinal, o horror éramos nós.

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