A antiga Faz Frio cheira a novo mas ainda se sente o passado

A casa histórica de Lisboa esteve fechada para obras durante nove meses. Temeu-se o pior quando se soube que teria um novo proprietário. Passado o calvário das obras, o restaurante está novamente aberto com "comida honesta e de tacho".

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O chão é o original. As mesas foram restauradas e receberam tampos novos, semelhantes aos antigos Miguel Manso
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Os gabinetes, onde no período da ditadura, se conspirava contra o regime, são os mesmos Miguel Manso
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O balcão de inox foi substituído, para dar lugar a um mais moderno Miguel Manso
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Os azulejos foram restaurados para ficarem iguais ao que eram Miguel Manso
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O restaurante foi alargado e a casa-de-banho foi modificada "para dar mais conforto aos clientes" Miguel Manso

Primeiro veio o medo. Quando se soube que a Antiga Casa Faz Frio ia fechar, em 2017, e reabrir com nova gerência, pressagiou-se o pior. Muitas vozes se ergueram para dizer que esta seria mais uma casa histórica de Lisboa a sucumbir ao embate do turismo e da gentrificação. Fez-se, inclusivamente, uma petição onde se afirmava que o interior seria completamente destruído e que nada voltaria a ser como era. À altura, Jorge Marques, o novo proprietário, disse ao PÚBLICO que as suas pretensões passavam apenas por melhorar o espaço, sem o descaracterizar. Passados nove meses, o dono da nova Faz Frio ressuscitou-a, e adaptou-a aos “tempos que se vivem”. Cumpriu a sua palavra: a história, essa, continua bem entranhada em cada recanto do 96 da Rua D. Pedro V, no Príncipe Real.

O chão em laje de pedra é o mesmo, ainda calejado pelos inúmeros pés que pisaram a casa de ponta a ponta durante mais de um século. O balcão já não é em inox, mas os cubículos que, entre outras coisas, afamaram o espaço, resistiram, agora pintados em tons de verde. Os 28 desenhos evocativos de antigas figuras do comércio lisboeta também lá estão. Diz-se que terão sido feitos por um freguês que, não tendo dinheiro para pagar as refeições, ofereceu a sua arte em troca de um prato quente. “A ideia sempre foi manter a mesma linha”, afirma Jorge Marques. “Havia gente que achava que íamos partir tudo, mas nunca nos vieram perguntar o que pretendíamos fazer aqui”.

O resultado das obras, que duraram desde Janeiro até ao final de Setembro, está agora à vista. O processo de reabilitação, diz o proprietário, foi desenvolvido em estreita ligação com o programa Lojas com História da câmara de Lisboa, que foi aconselhando o proprietário ao longo desses meses. “Havia algumas alterações que queria fazer nas cabines, mas eles disseram-me 'Jorge, não mexas'. E eu não mexi. Foi sempre tudo de acordo com a vontade deles”, refere.

O património que justifica a classificação manteve-se intocado. Os velhos azulejos foram intervencionados, “um por um e à mão”, garante Jorge. Os que não conseguiram recuperar foram substituídos por réplicas idênticas para “não destoar do antigo”. O marinheiro na porta, feito por Mário Cesariny, também lá está; o cacho de uvas junto à janela do bar manteve-se e a vitrina nos fundos do restaurante também foi recuperada.

Jorge Marques, apesar dos seus 26 anos, tem já a mochila cheia de experiências que o levaram a querer abraçar este desafio. Passou por Londres e Miami. Trabalhou num dos melhores restaurantes da Noruega e viajou pela Ásia. Foi após retornar a casa que percebeu que era mais feliz à mesa e, ainda mais, se partilhasse o seu “gosto com os outros”.

O menu foi inspirado no que outrora se comia no restaurante. Jorge trouxe consigo Mateus Freire, o chef de 29 anos que toma agora conta dos destinos da cozinha, e que se limitou a actualizar o receituário da casa. “Actualizámos a cozinha para a altura em que estamos na história”, sublinha. Apesar de antes ter passado por restaurantes incontornáveis na capital, como a Fortaleza do Guincho e o Tágide, assegura que “não há cá espuminhas nem nada”. Serve-se comida portuguesa, “honesta e de tacho”, diz.

O bacalhau continua a ser rei, como não poderia deixar de ser. Todos os dias há um prato em que é o protagonista, e há ainda uma nova receita de bacalhau à Assis, feito da mesma forma que o à brás, mas acrescentando cenoura frita e presunto, e uma feijoada de sames, confeccionada com a bexiga do bacalhau e “não muito comum de se ver em Lisboa”.

Jorge Marques acredita na venda de produtos com história e não o contrário. “Não ganharíamos nada com destruir o que já aqui estava”, sublinha. Ao falar do legado que tem em mãos, afirma de forma peremptória: “Tenho 26 anos e o espaço uns 150. Não tinha direito nenhum de acabar com a história que aqui está”.

Texto editado por Ana Fernandes

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