As utopias do possível e do impossível no Doclisboa

Este sábado à noite, ficará a conhecer-se o palmarés do festival. Mas as descobertas continuam durante o fim-de-semana, logo à cabeça com The Plan, de Steve Sprung, a história de uma utopia que podia ter mudado o mundo.

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The Plan (That Rose from the Bottom Up): um mergulho nas lutas laborais da Inglaterra dos anos 70 DR

É comum achar que a cerimónia de entrega dos prémios é o “ponto final” de um festival de cinema – mas no segundo e último fim-de-semana do Doclisboa há ainda tanto para ver, desde uma sessão do lendário Dueto da Corda, de John Landis, em homenagem a Aretha Franklin (Culturgest, domingo, às 21h30), à versão integral restaurada de Yol – Licença Precária, dos turcos Yilmaz Güney e Serif Gören, Palma de Ouro de Cannes em 1982 (Cinema São Jorge, sábado, às 14h); de Communion Los Angeles, ensaio-documentário de Adam Levine e Peter Bo Rappmund sobre a cidade dos anjos, com The Gas Station, uma das curtas que John Carpenter realizou em 1993 para o canal Showtime (Cinema Ideal, sábado, às 18h), a Samouni Road, que o italiano Stefano Savona (autor de Tahrir, sobre as manifestações da Praça Tahrir, no Cairo) foi rodar à faixa de Gaza e que venceu este ano o prémio de Melhor Documentário em Cannes (Cinema São Jorge, domingo, às 18h30).

Até faz esquecer que, oficialmente, o festival encerra este sábado à noite com a entrega do palmarés, seleccionado de entre os 40 filmes a concurso nas competições internacional e nacional. A seguir ao anúncio do palmarés (Cinema São Jorge, sábado, às 21h), de resto, ainda haverá o “futebol infinito” de Corneliu Porumboiu, o realizador romeno de Quando Cai a Noite em Bucareste ou Metabolismo e O Tesouro, cujo pai foi árbitro de futebol e que regressa ao “desporto-rei” – que já abordara em The Second Game (2014) – com Infinite Football. Em The Second Game, que por cá se viu no IndieLisboa e no Curtas Vila do Conde em ano de Mundial de Futebol, Porumboiu filmava a gravação de um jogo de 1988 arbitrado pelo pai, com a voz off entregue a uma conversa entre pai e filho que diz muito sobre a Roménia de ontem e de hoje.

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Infinite Football: o futebol como metáfora DR

Documentário mais convencional na forma (mesmo que não no tom), Infinite Football vê o cineasta regressar à sua Vaslui natal para se reencontrar com Laurentiu, amigo de infância que poderia ter sido um grande futebolista se duas lesões sucessivas não o tivessem impedido de seguir carreira. Hoje burocrata na câmara local, perseguido pela sensação de ter passado ao lado da verdadeira vida, Laurentiu dedica os seus tempos livres a encontrar uma solução para um problema que não existe: como tornar o futebol um melhor jogo? Como sempre em Porumboiu, estamos na corda bamba entre a incredulidade e a empatia mais profunda: uma pequena tragédia doméstica de um homem que o acaso não permitiu ir mais longe, embrulhado numa meditação sobre a possibilidade de uma utopia que talvez contenha o germe de uma autêntica solução.

David contra Golias

De certo modo, é também da possibilidade da utopia que fala The Plan (That Rose from the Bottom Up): neste caso, a utopia não é a de um jogo melhor mas sim a de uma sociedade melhor, nascida no cadinho das lutas laborais da Inglaterra dos anos 1970. Exibido fora de concurso em sessão única (Culturgest, sábado, às 14h15) seguida de um debate com a presença entre outros do realizador, de um dos “heróis” do filme, o engenheiro Phil Asquith, e do historiador Pacheco Pereira, o filme do britânico Steve Sprung conta a história esquecida de um grupo de trabalhadores sindicalizados da empresa Lucas Aerospace. 

Vendo os seus empregos em perigo e “picados” pela direcção a proporem o seu próprio plano de salvamento da empresa, puseram mãos à obra e criaram uma “utopia do possível”. Isto é, pegando nas especializações de cada um dos operários e na carteira de produtos já fabricados pela companhia, propuseram uma reorientação da produção em direcção a máquinas e produtos que aproveitassem ao máximo as especificidades da linha de produção e os talentos dos trabalhadores envolvidos, ao mesmo tempo que cumpriam um papel na melhoria da sociedade – desde motores semi-eléctricos a turbinas eólicas – com vista a garantir a sobrevivência da empresa a longo prazo perante as alterações climáticas.

Rejeitado pela empresa e nunca posto em prática, mas aclamado pela academia e pela imprensa que compreenderam o que ali se jogava, o Plano Lucas foi ficando perdido na história até que Sprung, veterano do cinema político britânico que fez parte dos colectivos Cinema Action ou Poster-Film Collective, se decidiu a contar a sua história. The Plan, co-produzido pela portuguesa LX Filmes mas possibilitado também por uma campanha de crowdfunding, vem com a “bênção” de gente como Ken Loach. E mesmo que as suas três horas e 40 minutos de aberta dimensão política possam exigir alguma disponibilidade do espectador, The Plan levanta questões importantíssimas: sobre a natureza do capitalismo, sobre a necessidade de insistir em valores sociais sem os quais a comunidade se desintegra, sobre o (continuado) elitismo inerente à própria sociedade britânica em que os de cima olham sempre de baixo para os operários. É uma história de David contra Golias em prol de uma utopia que podia ter mudado o mundo, se o tivessem permitido. 

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