A revolução está de volta à Praça Tahrir

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Mais de 40 partidos e movimentos pediram aos egípcios para encherem a praça KHALED DESOUKI/AFP

Os egípcios voltaram ao local onde derrubaram Mubarak. O ditador caiu, mas eles ainda não sentem que podem escolher o seu futuro. Agora querem obrigar os militares a abdicar do poder

Noha e Fatima tinham um compromisso familiar importante, mas não quiseram deixar de passar pela Praça Tahrir durante a manhã. "Estou aqui para dizer ao Conselho Supremo das Forças Armadas [conhecido no Egipto pela sigla inglesa, SCAF] que desista do poder e transfira a governação para as autoridades eleitas", explica Noha, uma dentista de 33 anos.

Ainda não são 11h e a Tahrir já está composta, com uma maioria esmagadora de apoiantes de movimentos islamistas: a Irmandade Muçulmana e o partido Liberdade e Justiça, que o movimento (ilegal até à queda de Hosni Mubarak, na revolta popular de Fevereiro) entretanto formou; e vários grupos salafistas (seguidores de um islão ortodoxo), incluindo a Jihad Islâmica e o partido Al-Nour (A Luz).

A Irmandade chegou à Tahrir na quinta-feira. De manhã já havia tendas e à noite já tinham erguido dois palcos e estavam a montar outros três. Muitos apoiantes e voluntários vieram de diferentes pontos do Egipto. Thamir Mohammed, professor de Inglês de 33 anos, viajou de Gharbia, no Norte, para fazer de segurança nos checkpoints que a Irmandade organizou nos pontos de acesso à praça. "O islão ordena-nos que trabalhemos em todas as áreas da vida e da sociedade", explica.

Mais de 40 partidos e movimentos pediram aos egípcios para encherem a Tahrir, incluindo os jovens da geração Facebook, responsáveis pelo começo da revolução que o Egipto ainda vive.

As exigências são claras e partilhadas por todos. O SCAF, liderado pelo general Tantawi, tem de realizar eleições presidenciais em Abril, em vez de arrastar o processo de transição até 2013, como agora defende. Em segundo lugar, deve desistir do "documento Selmi", nome pelo qual é conhecido o conjunto de 22 artigos supra-constitucionais que o Exército quer impor ao futuro Parlamento. Os artigos mais polémicos definem que o poder militar está acima do civil e que o orçamento do Exército será secreto, assim como que caberá ao SCAF escolher 80 dos 100 membros do comité que terá a cargo a redacção da futura Constituição.

Os egípcios começaram uma revolução para poderem escolher o seu destino. Quando Mubarak ordenou às forças de segurança que disparassem contra os manifestantes, o Exército decidiu que Mubarak estava acabado. Mas agora são os militares a dizer aos egípcios que cabe ao Exército determinar uma parte importante do seu futuro, ainda antes de a população ter votado - as legislativas começam no dia 28. Os egípcios responderam regressando à Tahrir com cartazes onde escreveram que "Tantawi é igual a Mubarak".

Noha e Fatima vieram expressar o seu descontentamento, mas também garantir que na Tahrir não estariam apenas islamistas. Muçulmanas de hijab, vão votar num dos novos partidos criados por jovens activistas, o Adl. Salma, cineasta de 33 anos, jeans e cabelo encaracolado descoberto, veio pelas mesmas razões. "Os media apresentaram o protesto como pertencendo aos islamistas. Era importante que viessem muitos liberais."

Sem comentários

Salma está preparada para anos de revolução e antecipa que passará muitas sextas-feiras na Tahrir. "Quando estávamos aqui acampados, em Fevereiro, ainda não tínhamos consciência disso, mas a revolução que estávamos a começar já era contra o Exército. Mubarak era só o tipo que por acaso estava no poder. A verdadeira autoridade eram os militares."

À volta de Salma, alguns dos seus amigos inventam formas de protesto. Um rapaz exibe uma folha em branco. "Sem comentários", explica. Uma adolescente põe o capuz da camisola na cabeça e diz "Já sou islamista, já posso estar aqui." Outros ensaiam novos slogans. "Protesto secreto, protesto secreto", gritam.

"Isto é sério, mas é preciso rir de tudo na vida. Vai ser um caminho longo e difícil", diz Salma. "Provavelmente, termos um Parlamento dominado pela Irmandade Muçulmana durante quatro anos faz parte do processo. Estou pronta para isso... Só espero que não me pendurem como exemplo", acrescenta, entre risos, enquanto aponta para um poste de iluminação.

Barbas e bloggers

Até às orações do meio-dia a praça foi dos islamistas e dos vendedores - de pipocas, chá e batata-doce assada, de chapéus com as cores da bandeira egípcia, pins e T-shirts.

Muitas barbas e túnicas. Estudantes da universidade Al-Azhar (o mais importante centro de estudos do islão sunita, no Cairo) a distribuírem panfletos com conselhos de vida ou membros da Jihad Islâmica a oferecerem livros intitulados Conhece os Teus Amigos e os Teus Inimigos ("judeus, cristãos, não crentes, não muçulmanos, democratas" eram os inimigos listados no índice). Muitos slogans religiosos: "Alá é grande", "O povo quer o que Deus quer, Deus quer um país islâmico" ou "O islão é a solução", lema da Irmandade.

Durante a tarde, a Tahrir começou a mudar de aspecto. Aos poucos, mesmo zonas antes ocupadas pela Irmandade encheram-se de grupos com bandeiras do movimento 6 de Abril (formado por bloggers num protesto organizado em 2008, no aniversário de Mubarak) ou da Juventude da Revolução (criado durante os protestos de Fevereiro).

Ao todo, vieram centenas de milhares. Muitos determinados em ficar. Amigos com tendas e cobertores, membros do 6 de Abril ou gente que chegou sozinha, como Walid, que viajou de Alexandria com um cartaz preso nas costas onde se lê que "o Exército tem de sair até Abril de 2012". "Desta vez não volto para casa. Enquanto não estiver convencido de que os militares vão abandonar o poder não saio daqui. Sei que vão tentar resistir, mandam neste país desde 1952 [ano do golpe militar que derrubou a monarquia]. Vou começar a procurar trabalho na Tahrir, vou ter de criar o meu próprio emprego."

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