Os miúdos que se fartaram de Dilma e nos protestos de 2013 semearam a nova direita brasileira

A vaga conservadora liderada por Bolsonaro tem na sua base uma miríade de grupos surgidos nas acções a favor do impeachment de Dilma. Hoje são militantes empenhados na eleição do ex-capitão, mas prometem vigilância activa assim que este chegar ao poder.

Foto
Manifestação contra os gastos no Campeonato do Mundo em São Paulo, em 2013 Ueslei Marcelino/Reuters

Quando lhe perguntam pela primeira vez em que participou numa manifestação, Fernando Holiday atira logo a data precisa: 15 de Março de 2015, a primeira acção a favor do impeachment da Presidente Dilma Rousseff.

Então com 19 anos, Holiday era já conhecido nos meios conservadores de São Paulo e estava previsto que discursasse. Confessa que estava nervoso, tinha escrito um discurso, reescreveu-o, tentou decorá-lo. “Na hora não disse nada do que tinha escrito, falei o que me veio à cabeça”, conta ao PÚBLICO. Assim que acabou de falar, Holiday sentiu que era aquilo que queria para a sua vida.

Quatro anos depois, Holiday é vereador municipal de São Paulo, o mais jovem de sempre a ser eleito, aos 20 anos, em 2016. Foi também o primeiro negro e homossexual assumido a ocupar o cargo. E também um dos principais rostos do Movimento Brasil Livre (MBL), um dos grupos que ajudou a sepultar o “petismo” e que é um dos pilares por trás mobilização maciça em torno de Jair Bolsonaro.

A poucos dias da segunda volta que pode colocar no Palácio do Planalto o candidato mais à direita na História recente do Brasil, Holiday recebeu o PÚBLICO no seu escritório na Câmara Municipal de São Paulo.

Contra o petismo

O despertar político de Holiday deu-se na escola, quando frequentava o liceu, e começou a debater nas aulas a questão das quotas raciais de acesso a cargos na Administração Pública. “Eu já não gostava muito da ideia de ter uma quota por conta da cor da pele, mas não tinha base teórica ou intelectual para ter essa posição, era mais por intuição”, diz. Inspirado por um professor que garante ter sido o único a dar-lhe oportunidade para ter uma opinião própria, Holiday começou a ler “autores liberais e conservadores”, que acabaram por influenciar o seu posicionamento político.

O gosto pelo enfrentamento político já lá estava. Começou a gravar pequenos vídeos que motivavam discussão nas aulas e chamou a atenção de um grupo conservador que começava a dar os primeiros passos, o MBL. Mas o objectivo nesta altura não era um envolvimento tão profundo no meio político. “A ideia era, em conjunto com o MBL, montar um canal de YouTube, parecido com o Porta dos Fundos, voltado para a política, mas bem-humorado e com um viés ideológico de direita”, explica.

Ao mesmo tempo, algo se mexia na política brasileira. Em 2014, após uma dura campanha, Dilma Rousseff era reeleita, vencendo por uma curta margem o candidato do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Aécio Neves. Este foi um ponto de viragem para Holiday, que, em conjunto com uma direita cada vez mais ressentida e revoltada com a manutenção do Partido dos Trabalhadores (PT) no poder, decidiu tomar o destino nas próprias mãos.

“Já havia um sentimento na sociedade, especialmente no Sul e Sudeste, que o ‘petismo’ se tinha esgotado por causa dos escândalos de corrupção e da crise económica”, recorda. As ruas não se calaram mais, e o MBL assumiu o protagonismo. As manifestações sucediam-se, umas atrás das outras, atraindo cada vez mais gente com uma única exigência: a destituição da Presidente.

As sementes tinham sido lançadas nos protestos do Verão de 2013, movidos sobretudo pelo descontentamento pelos preços dos transportes públicos e pelos gastos excessivos com a organização do Campeonato do Mundo. Se à superfície estas pareciam reivindicações tradicionais da esquerda, a verdade é que a direita também lá estava representada – e acabou por manter-se na rua.

“Os protestos de 2013 levaram gente de todo tipo às ruas, da esquerda à direita, o que gerou dificuldades para interpretar o significado político do fenómeno”, diz o historiador Rodrigo Patto Sá Motta. “Mas o facto é que a direita saiu às ruas naquela ocasião e tomou gosto, as suas lideranças sentiram o potencial para explorar o sentimento de descontentamento em relação aos governos ‘petistas’.”

O despertar da direita

Esta época representou uma espécie de “Primavera da direita”, depois de anos em que se viu de mãos atadas pelo apoio popular aos governos do PT. “A direita não avançou praticamente nada, justamente porque estava na órbita do PT”, diz a socióloga Esther Solano, coordenadora do livro O Ódio como Política: A Reinvenção das Direitas no Brasil (Boitempo). “Isso é que provocou essa reacção forte da direita.”

Os escândalos de corrupção e a fragilidade política de Dilma deram-lhe ânimo para se reerguer sob um novo manto. Solano nota um “efeito conjuntural” na emergência desta extrema-direita. “Não é algo que tenha uma tradição ou uma trajectória histórica no Brasil”, acrescenta.

Holiday define-se como um “conservador liberal”. Defende o mercado livre, a privatização de todas as empresas públicas, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, é contra a legalização de todas as drogas, contra o aborto e contra o financiamento público de exposições artísticas “controversas do ponto de vista moral e religioso”. Há um ano, o MBL organizou protestos em frente ao Museu de Arte Moderna de São Paulo por causa de uma performance que envolvia um artista totalmente nu.

Um dos feitos do MBL foi perceber muito cedo o poder das redes sociais, que usou abundantemente para organizar as manifestações a favor do impeachment.

Os seus líderes são especialistas no uso da linguagem da Internet, criam memes que podem acabar com carreiras políticas e souberam tornar temas conservadores nos mais apelativos para jovens eleitores. A página do Facebook do grupo tem três milhões de seguidores; a do PT tem metade. No início do mês, o grupo conseguiu eleger o seu fundador, Kim Kataguiri, deputado federal, pelo partido Democratas (DEM), e três deputados estaduais.

Um amigo de circunstância

Bolsonaro emerge neste ambiente e tira partido de uma militância altamente empenhada. No domingo, era do MBL um dos trios eléctricos que animava a manifestação de apoio ao capitão reformado na Avenida Paulista. Mas Bolsonaro e o MBL não são uma e a mesma coisa.

O próprio Holiday diz que o candidato que mais se aproximava da sua agenda era João Amoêdo, do Partido Novo. Acabou por votar em Bolsonaro apenas porque acreditou que o PT poderia ser derrotado logo à primeira volta.

“Tenho algumas discordâncias com Bolsonaro: ele encara o regime militar como um período glorioso do nosso país, eu já não vejo dessa forma, foi um período histórico triste. Ele considera algumas empresas públicas estratégicas, eu não concordo”, diz o jovem vereador eleito pelo DEM, um dos partidos mais à direita do espectro político brasileiro, mas curiosamente integrado no bloco do chamado "centrão" - as formações que tanto podem aliar-se à esquerda como à direita, consoante quem estiver mais perto do poder.

Rodrigo Sá Motta sublinha, que para grupos como o MBL, “Bolsonaro não é inteiramente confiável”. “Até há pouco tempo defendia posições estatistas, aliás típicas da tradição militar”, explica o professor da Universidade Federal de Minas Gerais. “A conversão do ex-capitão ao neoliberalismo é recente e oportunista, movida mais por cálculo eleitoral do que convicção.” O seu guru para a Economia, Paulo Guedes, é o responsável por essa conversão ao mercado.

Holiday prevê que a relação entre Bolsonaro e o MBL seja maioritariamente de apoio, embora com algumas discordâncias, como é o caso de algumas privatizações.

O vereador assume-se como um “político eleito pelas redes sociais”, onde também inclui o capitão reformado, e deixa um aviso, de jovem político para deputado veterano: “Ele tem o apoio do público no início, mas ao mínimo desvio daquilo a que se comprometeu na campanha, essa onda irá virar contra ele.”

Sugerir correcção
Ler 7 comentários