A vida de Gungunhana é contada por vários sotaques no São Luiz

A trilogia que Mia Couto dedicou ao imperador de Gaza chega agora a Lisboa, através da companhia O Bando. Netos de Gungunhana é um espectáculo para humanizar o outro e questionar a História.

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Netos de Gungunhana Estelle Valente
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Ao decidir dedicar uma trilogia à figura do imperador Gungunhana, o escritor moçambicano Mia Couto quis combater a imagem de um herói ou de uma figura trágica, quis convocar vozes que se opusessem, quis escrever para humanizar o outro – contrariando a estratégia que precede a guerra, a de desumanizar o adversário para desferir qualquer ataque sem remorsos. Não é uma ideia que tenha iluminado de forma consciente a adaptação da trilogia As Areias do Imperador ao teatro dirigida por João Brites e levada à cena pel’O Bando no Teatro São Luiz, em Lisboa, até 11 de Novembro. Mas é algo que encenador reconhece nas entrelinhas de um espectáculo que aborda (também) a colonização portuguesa: “Primeiro tem de se classificar o outro como coisa inferior para poder ocupá-lo”, diz. “E até contaminar as tropas com essas ideias para que elas possam cumprir os seus actos pensando que aquilo é outra coisa.”

A desumanização não reclama palco em Netos de Gungunhana. Mas o movimento contrário, o da humanização do outro que Mia Couto reclama para a sua obra, mostra-se através dos vários pontos de vista que fazem avançar a história ou até dos sotaques que vão denunciando as diferentes origens dos protagonistas. E são várias as origens porque João Brites quis construir o espectáculo com um elenco misto – portugueses, moçambicanos e brasileiros que se encarregarão de transportar esta mesma reflexão em diferentes encenações para os teatros dos seus países. Um elenco em que o sotaque, tal como a cor da pele, carrega de imediato esse estatuto de iguais ou diferentes.

Netos de Gungunhana começa, no entanto, em inglês. Uma conferencista – Alessandra Brito, activista política e fundadora do Instituto da Mulher Negra, uma não-actriz – discorre sobre o imperador de Gaza (região no Sul de Moçambique) e apresenta, em traços gerais, a biografia de Gungunhana, partilhada diante de alguns dos seus netos. É uma solução encontrada por Brites para oferecer ao espectador o contexto necessário ao acompanhamento daquilo que realmente lhe interessa – a imersão nas sete histórias dos sete netos, descendentes das sete mulheres (de um total de 300) que puderam acompanhar Gunganhana no momento da sua captura por soldados portugueses em 1895. “A história de Gungunhana é uma espécie de tapete sobre o qual queremos conversar para percebermos outras coisas”, diz o encenador. E refere-se, por exemplo, ao facto de o imperador nunca se ter preparado para a derrota.

Só que João Brites busca também uma zona de transição: entre o inglês e o português (que começa padronizado e se vai desmultiplicando numa admirável diversidade), entre o quotidiano e a representação; entre o academismo que sustenta uma versão dos factos e as histórias que se lhe seguem, inscritas em sangue quente, sem preocupação de sustentar qualquer tese; entre as vozes autorizadas e a multitude de narrativas que se reportam a verdades pessoais.

Mas esta zona de transição, exemplo de como “os mitos nos ajudam a compreender melhor o quotidiano”, é-o também na escolha da conferencista. Alessandra Brito trouxe para o debate criativo “uma perspectiva daquilo que são as lutas e os debates presentes no movimento negro em Portugal neste momento”, explica ao PÚBLICO. Em palco, na pele de académica, começa por falar da “importância de começarmos a pensar a História fora de uma visão eurocêntrica”, sem esquecer que “a cor é herança de uma História que determina a forma como estamos na sociedade”. Daí que, através da experiência de uma família, Netos de Gungunhana forneça alimento suficiente para discutir as narrativas oficiais e o encontro de Portugal com os países colonizados.

1200 páginas em duas horas

Netos de Gungunhana nasce de um encontro fortuito. João Brites cruzou-se com Mia Couto no espaço d’O Bando, em Palmela, e o romancista moçambicano falou-lhe dessa gigantesca empresa de convocar uma série de olhares diferentes para contar a história de Gungunhana. Brites logo encarou a possibilidade de cruzar estes olhares para erguer um espectáculo que aborda uma História comum mas valorizando as diferentes perspectivas, como forma de retirar poder à colonização institucional que continua a persistir entre nós através dos vários exercícios do poder.

À partida, a imensidão das 1200 páginas escritas por Mia Couto apresentava-se como uma ambição demasiado desmedida para caber num espectáculo de duas horas. Daí que tenha cabido a Miguel Jesus, responsável pela dramaturgia, peneirar o texto de Mia Couto e dele extrair uma forma de contar a história sem reproduzir os três romances em palco. E foi Miguel Jesus a propor que a peça siga a narrativa da família de Imani, uma das mulheres de Gungunhana. Porque a escala da família tanto se faz de pequenas contribuições individuais quanto permite extrapolar para a dimensão de uma comunidade ou de uma nação.

O certo é que ao trabalhar com actores portugueses, brasileiros e moçambicanos, e ao apresentar Netos de Gungunhana em cada um dos respectivos países, é também à procura desses outros olhares que João Brites quer partir, tentando provocar os diferentes debates locais que o texto levanta e recusando uma visão deste espectáculo que se sobreponha às outras. Mas dificilmente a peça não caminhará para aquilo que aqui se intui, de um apelo a um futuro que saiba libertar-se e distanciar-se do passado. Aos netos, bisnetos e trinetos de Gungunha cabe contar uma outra História.

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