Um Voldemort em cada esquina

Se juntarmos o mundo dos meus amigos de esquerda ao mundo dos meus amigos de direita, o mundo com que ficamos nas mãos é ainda mais deprimente do que a soma das partes.

Não quero mais ouvir falar teu nome, cantava a diva Cláudia Barroso num sucesso da música brasileira gravado em 1972. Vou fazer tudo para poder te esquecer.

Na voz quente e doce da rainha da música romântica popular naquele Brasil de 70 e 80, era a dor da saudade que escorregava pelas palavras abaixo. Não era o desprezo, o medo ou a repugnância que levavam Cláudia Barroso a não dizer um nome – de certa forma, era precisamente o contrário de tudo isso.

Mas o que está na base de uma decisão radical como aquela – a de nunca mais dizer um nome – é só uma, seja ela motivada pelo amor ou pelo desprezo. É, para todos os efeitos, o mesmo que atirar um problema para trás das costas e fingir que ele não existe.

Foi nesse lugar, lá onde se tentam enterrar os problemas que se fingem de mortos, que encontrei nas últimas semanas alguns dos meus amigos de esquerda – mais precisamente desde que o candidato que rima com Naro começou a ganhar embalagem para vencer as eleições no Brasil.

Foto
Apoiantes de Jair Bolsonaro no dia da primeira volta das presidenciais do Brasil Ueslei Marcelino/Reuters

Dizem os meus amigos de esquerda que o candidato que rima com Naro não deve ser tratado pelo nome, porque defende ideias desprezíveis e repugnantes.

O fenómeno não é novo e está a transformar a política internacional numa espécie de mundo mágico, com um Aquele Cujo Nome Não Deve Ser Pronunciado em cada esquina.

Aconteceu em 2016, com aquele candidato que rima com Rump e que ninguém esperava ver na Casa Branca depois das eleições presidenciais em que a favorita era Hillary Clinton.

Durante a campanha que desembocou nessas eleições, o esforço de Barack Obama para não dizer o nome do candidato que rima com Rump era tão evidente que a jornalista Gwen Ifill sentiu que era preciso questioná-lo sobre isso.

A resposta do então Presidente norte-americano foi muito parecida à que recebi dos meus amigos de esquerda sobre a decisão de não dizerem o nome do candidato que rima com Naro: “Parece que ele está a fazer um bom trabalho a dizer o seu próprio nome. Por isso, vou deixar que seja ele a fazer a sua própria publicidade.”

Mais tarde, quando o candidato que rima com Rump já se preparava para tomar posse como Presidente dos EUA, a Igreja de Todos os Santos de Pasadena, na Califórnia, tomou uma decisão que por certo agradaria aos meus amigos de esquerda: os fiéis iriam continuar a rezar pelo homem que ocupa o cargo de Presidente, mas não iriam pronunciar o nome do Presidente que rima com Rump.

Para piorar a situação, alguns dos meus amigos de direita também decidiram mudar-se para o mundo mágico de Harry Potter, embora para uma zona muito distante, que isto hoje em dia não está para misturas nem que tenhamos andado todos a apanhar caricas do chão e a partir janelas com a bola quando tínhamos dez anos.

Dizem estes amigos de direita que a subida da popularidade do candidato que rima com Rump e do candidato que rima com Naro são proporcionais ao radicalismo das manifestações contra eles. É uma variação daquela velha máxima aplaudida nas áreas mais deprimentes da publicidade – falem mal, mas falem de mim.

Ora, o problema é que se juntarmos o mundo dos meus amigos de esquerda ao mundo dos meus amigos de direita, o mundo com que ficamos nas mãos é ainda mais deprimente do que a soma das partes.

Falar sobre os defensores de ideologias extremistas sem dizer os seus nomes e sem protestar contra eles como se a democracia estivesse em causa não é uma estratégia de campanha em países livres – é a única estratégia possível quando os países deixam de ser livres.

Sugerir correcção
Comentar