A soul de toda uma vida do vira-lata Swamp Dogg

Um dos nomes mais secretos da música popular americana a cantar a América na sua mui orgulhosa e extragavante sombra desde os anos 50 detona 2018 com um velhíssimo-novíssimo-disco de toda uma vida. Chapeau, Mr. Dogg!

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David McMurry

“Que estranho caminho percorreste tu para chegar aqui”, podíamos ter-lhe dito pelo meio das duas horas que durou a conversa entre Porto e Los Angeles. Nós em ameno fim de tarde, ele de manga cava branca acabado de acordar, a fresca a entrar-lhe pela varanda (por onde sairá até ao jardim num dos muitos cacofónicos momentos em que interrompe abruptamente, sem má-educação, a entrevista). Frase de particulares ressonâncias para cinéfilos (“disse-a” Bresson no final de Pickpocket, emulou-a César Monteiro em As Bodas de Deus) que o próprio Swamp Dogg, nascido Jerry Williams Jr., nos poderia ter devolvido: "que estranho caminho percorri eu para, em 2018, ter o jornal de um minúsculo país do outro lado do Atlântico com uma área inferior à da Virgínia onde nasci a querer saber de mim". Um caminho que, iniciado nos anos 40 na pequena cidade de Portsmouth, se fez de muitos escolhos e revezes: “Se um branco viesse pelo passeio na minha direcção, eu tinha de passar para a rua. Felizmente, não havia muito trânsito na cidade naquela altura!”, gargalha ele, bem-disposto. “Portsmouth é uma cidade naval e uma base da marinha militar. Quando um navio atracava, 3000 tipos desciam para se divertir. Aos negros e brancos que eram os melhores amigos durante meses na água diziam-lhes em terra: ‘Vocês não podem andar juntos!’. Havia escolas separadas, bairros separados… Se eu passasse de bicicleta por um bairro branco, as hipóteses de me atirarem pedras eram reduzidas, mas por vezes acontecia”. As mesmas ruas onde à medida que passava "por dez casas, de pelo menos cinco delas ouvia grandes álbuns de música negra a tocar. Naquele tempo, toda a gente tinha um grande piano em casa e eu ia de casa em casa tocar. No Verão, as pessoas gritavam do alpendre: ‘Entra, Little Jerry, anda tocar!”.

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É libertador o modo como, para além do plano emocional, Swamp se expõe destapando o corpo velho, rugoso, dele fazendo um exuberante cartão-de-visita Erik Madigan Heck

Se, em Agosto, falávamos do injustíssimo esquecimento a que grande parte da black music brasileira dos anos 70/80 continua hoje votada e, por essa razão, distante do imaginário popular, no caso de Swamp Dogg, músico de 76 anos que, com apenas 12, gravava, então ainda como Little Jerry Williams, a sua primeira canção [HTD Blues (Heartsick Troublesome Downout Blues, 1954], as coisas passam-se de forma um pouco diferente. Não só porque a música negra americana é, hoje, música popular adorada em todo o mundo; mas também pela postura idiossincrática do próprio Swamp, algo de “voluntário” havendo, por isso, no seu esquecimento. O que faz com que, não obstante uma prolífica discografia, nem um reconhecível hit lhe possamos associar (o mais perto que disso encontramos talvez seja Synthetic World, embora tenha ficado mais conhecido na voz de Jimmy Cliff), a solo ou colaborativamente, ele que, com algumas excepções (Dee Dee Warwick, Pati LaBelle, Ruth Brown, Solomon Burke), produziu e escreveu para numerosos nomes do R&B e da soul de segunda ou terceira linha – em termos de popularidade, entenda-se, pois que produzir um disco para Z.Z. Hill (Velvet Soul, 1982) ou Irma Thomas (Turn My World Around, 1993) significa só trabalhar com duas das mais virtuosas vozes da soul americana. Por outro lado, e para nossa surpresa, Swamp confessa-nos uma crónica falta de confiança só resolvida nos últimos anos: “Aparentemente, eu não era tão mau como pensava. Sempre tive medo do palco, ainda hoje tenho. Havia tipos naquela altura que sabiam como mandar abaixo um palco, partiam a loiça toda! Hoje, estou a fazer o mesmo e, por isso, as pessoas acham que eu sou um grande motherfucker, mas só estou a fazer o que eles faziam!”.

Independente, provocador, excêntrico (é ver o seu inclassificável canal no YouTube), incómodo, satírico, tantas vezes o elefante no meio da sala – e, frequentemente uma sala de homens brancos, como zombava ele no disco-título The White Man Made Me Do It (2014): “Apesar dos negros já terem feito muito, grande parte foi aquilo que os brancos lhes disseram para fazer… Porque nós acreditamos sempre em vocês!” (risos). Nos últimos anos, porém, tem beneficiado de uma assinalável revalorização da sua obra entre coleccionadores e especialistas, com Total Destruction To Your Mind (LP de estreia em 70) a ser considerada uma obra-prima da soul americana por descobrir (embora o nosso predilecto ainda seja Cuffed, Collared & Tagged, 1972). Love, Loss & Auto-tune, o novíssimo álbum que simultaneamente é e não é o Swamp de sempre, só veio, portanto, fomentar este revisionista entusiasmo pelo trabalho e persona do dogg (já não gato, portanto) das 7 vidas passadas entre a Virgínia, Filadélfia, Nova Iorque e Los Angeles.

Orgulhosamente só a tocar nas feridas da América

Se o som da southern soul (também conhecida por deep soul, representada por editoras como a Stax, a Goldwax ou a Hi Records e da qual o chamado Memphis sound é o seu expoente) sempre se opôs ao da Motown por o desta última ser, digamos, menos “negro” (no sentido em que propiciou não só um cruzamento entre músicos e públicos negros e brancos, mas, também, entre a soul, o R&B, o rock e a pop “branca”) e mais polido, “seriado” (desde logo pelo facto de a Motown ter começado a lançar música “fordianamente”, com rotinas fabris de produção e de “controlo de qualidade”), Swamp é absolutamente southern. Embora o sublinhe que, na sua formação e gosto musicais, a country e os seus heróis (brancos), caso de Hank Williams, Spade Cooley ou Red Foley, ocupem o primeiro lugar. Mas, dizíamos, southern não só musicalmente falando, pois que, embora cruze a soul com o R&B e o rock, o seu som se apresenta sempre selvagem (bastando, para isso, ouvir I Want To Hear Some Rock N Roll, com a utilização, muito esdrúxula, de scratch e samples); mas, bem assim, porque as letras desempoeiradas e subversivas, abordando directamente temas-tabu que, na Motown, só eram pontualmente autorizados aos consagrados, tocavam na ferida de uma sociedade que, nos setentas, convulsava entre o movimento dos Civil Rights e os Black Panthers, Woodstock e o movimento hippie, a guerra do Vietname e a ameaça nuclear. Por isso e para isso, a transformação de Little Jerry Williams em Swamp Dogg, nome – e espaço para uma atitude marginal, transgressora – cuja origem o músico deixou explicada na edição de Best of 25 Years of Swamp Dogg (1995): “Jerry Wexler, produtor e inovador da Atlantic Records (…) estava a gravar a nova meca do funk de Muscle Shoals, no Alabama (…). Ele cunhou o termo ‘Swamp Music’ para aquele espantoso funk predominantemente tocado por brancos que acompanhavam as ‘instituições’ do R&B como Wilson Pickett, Aretha Franklin (…). Eu também utilizava estes músicos swamp e estava farto de ser uma jukebox dos hits do Chuck Jackson, Ben E. King (…). Queria cantar sobre tudo e mais alguma coisa e não ser seriado pela indústria. Por isso, escolhi ‘Dogg’, porque um cão pode fazer tudo o que lhe apetece e nada do que fizer será propriamente uma surpresa: se ele dormir no sofá, cagar no tapete, mijar nos cortinados, mastigar os chinelos, ferrar a perna da tua sogra, atirar-se para cima de roupa nova ou lamber-te a cara, nunca deixa de ser a personagem que é. Tu aceitas o que ele faz, amaldiçoa-lo enquanto lhe dás abébias, mas o teu amor por ele nunca diminui!”.

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"God Ain’t Blessing America", cantava ele em Have You Heard This Story? (1974), numa frasezinha destas sentenciando todo um abanão às grandes e simbólicas instituições americanas, assim dando continuação à Total Destruction Of Your Mind iniciada anos antes: jovens mães solteiras e miúdos de pai incerto (ele que foi educado por mãe cantora e padrasto talentoso, “um desses tipos que tocava qualquer instrumento”), infidelidades e casamentos abalroados em doces lares que viram broken homes, psicotrópicos e sexo, o racismo (conferir Apelle-Moi Noir) e a hipocrisia da igreja, psicadelismo, humor e nonsense. Tudo isto fazendo de Swamp, à data como hoje, um OVNI da música negra, algo reforçado pela extravagante imagem, devedora da iconografia do O.G. (Original Gangster) celebrizada pelos papas do funk George Clinton e Bootsy Collins a partir do submundo dos gangsters e pimps negros (e que o hip-hop viria também a perfilhar, desde logo, claro, por Snoop Dogg, relativamente a quem Swamp nos diz já se terem conhecido e, até, apalavrado uma colaboração). Mas não só a imagem da sua indumentária, também a gráfica: a Swamp pertencem algumas das mais bizarras capas (e títulos, já agora) de discos da música popular, collages surrealistas e esquizóides, desconcertantes, a começar em An Opportunity... Not A Bargain!!! (com um cão a lamber o focinho em grande plano) e I'm Not Selling Out/I'm Buying In! (Swamp, todo vestido de branco, em cima de uma mesa rodeada de white collars), passando por Swamp Dogg (de tanga tigresa no meio da selva), Surfin' In Harlem (Swamp a surfar uma “onda” de água expelida por uma boca de incêndio), Ressurection (crucificado como Cristo com a inscrição “Witness Protection Program” na testa) e terminando, claro, em Rat On!, frequentemente considerada a pior cover art de sempre: numa montagem muito tosca, Swamp, de braços no ar, a cavalgar um rato branco gigante. E é quando lhe falamos nesta última que se levanta e se dirige, em passo vagaroso, ao jardim para nos mostrar a réplica gigante dessa capa que tem gravada na… piscina. Mas mais do que uma “personagem” curiosa, um curioso: vai-nos interrompendo para perguntar quantas pessoas vivem em Portugal (quando lhe perguntamos se já provou vinho do Porto, a resposta negativa, “Já não bebo, antes embebedava-me e andava à pancada com jornalistas e DJs!”, impede-nos de fazer o trocadilho e lhe dizer que a sua música é como o dito cujo), se o sítio onde aparecemos no visor é o nosso quarto e o que é, afinal, aquela weird shit (calças penduradas) ali atrás. Ou, enfim, se já o ouvimos na canção Résumé que os alemães Mouse On Mars compuseram para o seu novo disco Dimensional People, para a qual Swamp acrescentou à letra original (pertencente à lindíssima In My Resume, de Cuffed, Collared & Tagged) um nostálgico trecho: “I had a hit record / It was a hit throughout the country / And it was a smash hit throughout the south / It’s called ‘Baby You Are My Everything’ (…) / And that’s what got me on the tour”.

O amor não escolhe idades – o sexo também não

Mas antes desse hit record, a primeiríssima canção de Swamp, de sintomático título HTD Blues (Heartsick Troublesome Downout Blues), indiciava já tudo o que estava para vir: um romântico incurável, um pinga-amor (Wife Sitter, apresentava-se ele ao serviço em Gag A Maggot, 1973) que, doente do coração (Heartsick) com apenas doze primaveras, chega a 2018, aos 76 anos, para se confessar, desabafar, reflectir sobre o Amor e a Perda – Love, Loss & Auto-tune, título-fórmula sónica e emocional. E também por isso é que o disco soa tão jovial e naïf, como se, depois da “idade adulta” e respectivas cicatrizes, pudéssemos voltar a falar do amor sem cinismos e cintos de segurança, como só o fazemos em miúdos. Amor a que se, convencionalmente, nos habituámos a referir em termos “gustativos”, como coisa “agri-doce”, Swamp, divertido storyteller, tratava já, em Surfin In’ Harlem (1991), “olfactivamente”: Love Stinks, queixava-se ele, relatando um casório que, celebrado no domingo, descamba na segunda-feira seguinte quando apanha a mulher na cama com um amigo. Love, Loss & Auto-tune inicia-se logo em queda (pese embora a envolvência mais colorida de Lonely, ternurento doo-wop para os anos 2000), uma tríade de canções sobre fracasso e carência (em I’ll Pretend, que conta com os dedilhados do lendário Guitar Shorty, Swamp é o tipo destroçado a querer acreditar que a sua amada apenas foi de férias e voltará em breve, “I can't live like this” sendo as únicas palavras que diz para a câmara no respectivo videoclip), frustração, culpa, expiação. Logo no épico inaugural Answer Me, My Love (recriação do original de Nat King Cole) se sentindo aquela muito característica e muito bela confusão latente em toda a grande soul americana, essa de o destinatário do texto poder ser a amada e, simultaneamente, um qualquer Todo-Poderoso – algo até potenciado pela própria fonética (My Love, My Lord…) e semântica (“Please listen to my prayer”, suplica ele exactamente a quem?). O que, por sua vez, nos remete para o desejo de Swamp em fazer um próximo disco inteiramente gospel, ele que, considerando-se religioso, não hesita na hora de marcar a sua distância (ou melhor, o seu desprezo) para a igreja.

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Erik Madigan Heck

"Fui educado como baptista, depois tornei-me católico. Mas quando os padres começaram a abusar dos miúdos, afastei-me dessa merda toda. Sou religioso porque rezo todas as noites e peço amor, e, normalmente Ele devolve-me uma grande parte, o que é cool. Apesar de amar e acreditar em Deus, não sinto o que os cantores de gospel dizem, coisas como: ‘Take me home, Lord!’. Isso é bullshit! Eu não quero ir para ‘casa’, já estou em casa, aqui mesmo, Los Angeles… Não quero morrer” (momento inesperadamente solene em que imediatamente nos lembramos da sua canção I Wouldn't Leave Here to Go to Heaven). O astral só se levantará com I'm Coming With Love On My Mind, toada finalmente festiva, dançante, ao ritmo de uma batida electro-synth-pop na qual Swamp, tal como em $$$ Huntin' (a prisão que aqui se ouve é metafórica, a das bills to pay), desmistifica o ignorante estereótipo de que só no hip-hop existem letras de ambição ou ostentação material. Um cocktail funky irresistível prolongado depois em $$$ Huntin' e I Love Me More – a angústia passional de volta, mas agora matizada por um reforçado amor-próprio, algo que, se é o que habitualmente a idade ensina, o facto de o ouvirmos a um ancião só denota como, na vida, estamos permanentemente a aprender e a desaprender.

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Love, Loss & Auto-tune: um clássico a fazer um disco absolutamente não-clássico David_McMurry

Aos 12 ou aos 76 anos, doce e/ou mal-cheiroso, o amor, de facto, não escolhe idades – e o sexo também não. Por isso é que é tão bonito, refrescante, comovente mesmo, ouvi-lo hoje, avô longevo, a cantar tão naturalmente o sexo, sempre tema-tabu – o sexo entre idosos, entenda-se – mesmo no mundo ocidental. O mesmo no qual, em plena era de irrestritos conteúdos acessíveis na Internet, às crianças se proíbe a visualização de sexo consentido entre adultos fotografado por Mapplethorpe e em que esses mesmos adultos, por sua vez, parecem não gostar de ver os pais e avós a darem largas ao desejo. E falar sobre sexo bem pode passar por simplesmente cantar o quão maravilhoso é fazer amor com uma antiga amada – soa a adolescente despreocupado, não é? Mas não, é um septuagenário, e ainda bem: “Ain’t nothing wrong with having sex with you ex / Sometimes it’s all you need to be happy (…) / It'll take away the tension and stop you from feeling crappy”, canta na muito apropriadamente intitulada Sex With Your Ex, que começa com um pianada à cowboy (evocadora da de Woman To Woman de Joe Coker) para desaguar, qual êxtase final, numa distorção de voz, guitarra eléctrica e baixo levada ao inimaginável.

“Eu acho o sexo maravilhoso. E, sempre que abro a Bíblia, ela está cheia de imagens de pessoas nuas, tal como naqueles primeiros Picassos... Acho que as pessoas que protestam contra as minhas letras não estão a receber o seu share, estão aborrecidas e não querem que os outros recebam o seu!” (risos). Da mesma forma que se revela igualmente libertador o modo como, para além do plano emocional, Swamp se expõe, digamos, plasticamente, destapando o seu corpo velho, anafado, rugoso, dele fazendo, ao invés, um inesperadamente exuberante cartão-de-visita.

Este Auto-tune (também) é para velhos

Quando lhe perguntamos que ideias tinha, inicialmente, para o novo disco, se já tinha em mente fazer algo tão radicalmente diferente em termos sónicos dos trabalhos anteriores, é peremptório: a princípio, “It was more of the same old Swamp Dogg shit”. E, de facto a extensa discografia de Swamp peca por redundante, discos que, sem prejuízo dos seus méritos (sempre dotados de excelentes orquestrações, muito bem tocados), pouco ou nada acrescentam aos que os antecedem. Por isso é que, assim que o ouvinte carrega no play de Love, Loss & Auto-tune – e mesmo que em nenhum momento anterior tenha ouvido Swamp –, um sobressalto o acometerá permanentemente para os minutos seguintes. Quando lhe confessamos o quanto o nome de Kanye West nos veio à memória, desde logo pela aplicação emocional que é dada ao Auto-tune, Swamp revela-nos que o disco esteve para contar com uma colaboração do controverso músico de Chicago, o que acabou por não acontecer devido a um desencontro de timings. Em si mesmo um processador audio originalmente criado para corrigir imprecisões e desalinhos da performance vocal e instrumental, o Auto-tune tem vindo a ser utlizado, desde os alvores dos 2000, ironicamente, para “desalinhar” a voz dos intérpretes, distorcendo-a, robotizando-a, levando-a a sítios aonde, de outra forma, não chegaria. Particularmente dentro do hip-hop, conheceu uma aplicação intensa pela pioneira mão do produtor e rapper T-Pain, desde aí constituindo motivo de um crispado debate entre aqueles (público e artistas) que elogiam as portas criativas por ele abertas e os outros que o consideram uma deturpação e, sobretudo, um “abaixamento” do bom gosto. Polarização (Jay-Z chegou a dedicar-lhe a canção D.O.A. (Death of Auto-Tune) que se reflectiria nos resultados: se alguém como Lil Wayne se encharcou no Auto-tune para criar alguns dos discos de mau gosto mais populares do século XXI, Kanye West dele se serviu para erigir a obra-prima que é 808s & Heartbreak. Foi Ryan Olson, produtor dos Poliça (banda americana que tem na electrónica o seu centro irradiador para a pop, o R&B e o indie rock) quem, assistido por Justin Vernon (o frontman dos Bon Iver que tem colaborado regularmente com Kanye, e que trouxe para o disco de Swamp o famigerado “Messina”, novo sintetizador criado pelo seu engenheiro de som Chris Messina), recebendo a primeira versão do álbum, propôs a Swamp a aventura, o arrojo, o experimentalismo que o ouvinte pode testemunhar, sobretudo através da distorção, do (des)equilíbrio não-convencional dos volumes e, até, das quebras harmónicas deliberadas (não por acaso o disco é editado pela Joyful Noise, selo independente de Indianapolis especializado em metal e música experimental).

Embora Swamp seja, muito humildemente, o primeiro a recusar qualquer descoberta da pólvora: “Na verdade, utilizámos o Auto-tune para soar como outros tipos que também o utilizam. Mas, antigamente, os músicos não faziam isto! Toda a gente tinha um estilo único e a sua forma de tocar. O Louis Jordan, que é um dos meus músicos favoritos, não tentava tocar como o Coltrane e o Coltrane não tentava tocar como ninguém!”. Oiçamos, por exemplo, Answer Me, My Love, a doçura das teclas e dos synths tintada pelo negrume sempre à espreita composto de cordas e de trompetes melodicamente descontextualizados, assim se criando um efeito de estranhamento, trágico-doce. Ou aqueles minúsculos e insólitos apontamentos (aos 00:34 e aos 2:37) que atiram a canção, por instantes, para uma assustadora esquizofrenia, desafinando-a tanto harmónica como “emocionalmente”, ameaçando fazê-la descarrilar subitamente. Muitíssimo mérito, por isso, para Olson, que entreviu na voz e orquestração clássicas de Swamp a possibilidade de as fazer transitar para outro canal sónico, transmutá-las numa coisa outra, embora com a agri-doce ironia de o abraçar de uma ferramenta moderna como o Auto-tune sublinhar, numa espécie de “regresso ao futuro”, uma sensação de desfasamento ou anacronia de Swamp – ou nem tanto assim, pois que o americano, afinal de contas, sempre esteve do lado “errado” da soul convencional para mostrar em casa aos pais.

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“O MoogStar [músico com quem tem colaborado nos últimos anos] e eu produzimos o disco e depois enviamos para o Ryan. O disco estava fechado, mas eu estava aberto a novas ideias. Ele sugeriu: ‘Eu quero testar algumas coisas em cima disto’. Antes, o disco não dizia “Hi, I’m the new kid on the block!”, mas agora diz!”, rejubila Swamp. “O resultado ficou realmente bom, eu adoro! Foi como passar de um dia chuvoso para um dos mais esplendorosos dias de sempre! Já foi a Miami? Pode ir na rua a conduzir enquanto chove a potes e, de repente, a chuva pára e o sol aparece em menos de um minuto. E é maravilhoso... Tu páras, esticas-te na cadeira e aproveitas esse momento”.

Num tempo em que, um pouco por todo o lado, se viraliza o fetiche artístico em “desconstruir” e/ou em misturar os ingredientes todos na sopa e esperar que, no fim, por artes mágicas, ela resulte agradável ao paladar, Love, Loss & Auto-tune é, também, uma lição de “desconstrução”: é que, para desconstruir, é preciso, antes de mais, saber construir. O disco de Swamp é a prova disso: um clássico a fazer um disco absolutamente não-clássico, a partir a pedra da qual conhece a respectiva composição mineral como a palma das suas mãos (um pouco como Gil Scott-Heron e Bobby Womack, embora de modo não tão radical, empreenderam nos seus discos I'm New Here e The Bravest Man in the Universe). Por isso é que, num álbum polifónico, poliédrico e, não raras vezes, celestialmente cacofónico como este, o Auto-tune é utilizado não por defeito, mas por excesso. Queremos dizer: ele (Auto-tune) está lá não para colmatar deficiências vocais, antes para transformar (desconstruir, então) a voz original de Swamp, imprimindo-lhe um efeito de saturação e de uma pungente intensidade emocional. Em todo o caso, um efeito utilizado com conta e medida, reduzido ao mínimo ou mesmo eclipsado quando (des)necessário, como na belissimamente orquestrada balada de despedida Star Dust (praticamente impossível de nela se detectar o original homónimo, de 1927, pertencente a Hoagy Carmichael), grand finale que soa quase à marcha nupcial de um imaginário casamento selando todo o amor acumulado ao longo do disco. Aliado ao experimentalismo sónico, a aplicação do Auto-tune inculca, ainda, uma sensação de alienação, não só mental mas até em sentido mais literal, como se de um objecto espacial o disco se tratasse, tantas vezes prestes a desintegrar-se no espaço (oiçam-se os últimos segundos de I'm Coming With Love On My Mind ou de Sex With Your Ex). Se bem que a aparente gravidade do que aqui descrevemos seja contrariada pela dimensão clownesca (mas de um palhaço-triste) de todo o disco: ou seja, quase 50 anos depois, o que temos aqui, no fundo, é uma nova Total Destruction Of Your Mind, não menos subversiva (embora menos politizada: “Trump assusta-me, por isso é que há menos política neste álbum. Estou assustado e farto dele”), não menos lasciva, humorística, delirante. O mesmo tipo de contrabalanço, agora visual (os videoclips de I’ll Pretend e Lonely), potenciado pelo paralelismo entre, de um lado, a solidão, a inadaptação e a velhice melancólica (magnificamente filmadas em I’ll Pretend), e as texturas e cores garridas e luxuriantes (da roupa, dos interiores, da paisagem urbana), do outro. A vida, malgré tout, (também) está para os velhos! – até porque, como também se usa de dizer, quem corre por gosto não cansa, e Swamp já nos idos de 70 nos dizia que “If I Die Tomorrow / I've Lived Tonight”.

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