Entrevista ao PÚBLICO em 2002: Solomon Burke, resistente com soul

Como a maior parte dos grandes cantores soul, o americano Solomon Burke, começou pelo gospel na igreja. Até aqui nada de surpreendente. O que talvez não seja tão usual é o pormenor de, aos 62 anos (nasceu em 1940 em Filadélfia), continuar fielmente a cantar na igreja na companhia do seu inseparável organista, Rudy Copeland. Mas ainda mais espantoso é o facto de o grande responsável por esta devoção ser português.

"Nunca estive em Portugal, mas adorava ir", diz Solomon Burke ao Y, enquanto se ri às gargalhadas — algo que irá acontecer ao longo de toda a conversa. "O meu avô nasceu em Portugal. Foi alguém que me marcou muito na minha relação com a fé. Era uma pessoa muito bonita, com os seus cabelos compridos, o sotaque português... Sempre que falava de Portugal vinham-lhe lágrimas aos olhos. Deu-me tanto em criança! A música que me tocava, os sons, os ritmos... tudo isso está presente na minha música. Ensinou-me a expressar o amor, a não ter medo de o fazer. Esse é o segredo mais íntimo da nossa vida. Como comunicar isso, ensinar isso. Vamos falar os dois, comunicar os dois e, se o conseguirmos fazer, vamos prosperar os dois".

Solomon Burke foi uma das maiores figuras da música soul nos anos 60, principalmente nos tempos em que gravou para a Atlantic Records. Com uma voz forte e emocional, constituiu, ao lado de Otis Redding ou Wilson Pickett, uma forte influência para os meios rock. Os Rollings Stones, por exemplo, chegaram a fazer duas versões de temas seus, "Cry to me" e "Everybody needs somebody to love". Ao longos dos anos 70, 80 e 90, continuou a gravar regularmente inúmeros álbuns, mas já parecia ter ficado irremediavelmente na sombra.

Até que a editora de Tom Waits e de Tricky, a Epitaph (através da subsidiária Fat Possum), resolveu recuperá-lo. "A verdade é que nunca tinha ouvido falar na Epitaph", conta um Solomon divertido. "Estava em Portland, num festival, e havia um tipo que estava a toda a hora a tentar falar comigo. Andava tão ocupado que não lhe dispensei grande atenção. No aeroporto cruzámo-nos outra vez e ele voltou à carga. Disse-me que era o Andy da Fat Possum e que queria falar comigo. Virei-me para o meu filho e disse-lhe: 'anda por ai um tipo de uma equipa de futebol que me quer transformar em mascote... [risos]'. E o meu filho ripostou: 'quanto é que ele paga?... [risos]'. No avião, sentou-se a meu lado e, finalmente, percebi que ele dirigia uma editora. Conversámos e, depois de alguns encontros, assinámos um compromisso. Disse-me que ia ter com os principais compositores do momento para me escreverem canções e eu disse: "Claro, claro!!!', sem acreditar numa palavra ...[risos]. Mas como me passou um belo cheque não estive para grandes discussões".

Burke não acreditou, mas a verdade é que uma série de nomes de referência da pop responderam ao apelo e foi assim que acabou a cantar composições originais de Bob Dylan, Elvis Costello, Tom Waits, Van Mornson, Bnan Wilson ou Nick Lowe. "Essas canções foram uma devida", diz, emocionado. "O facto de todos esses grandes artistas se lembrarem de mim e do meu trabalho enche-me de orgulho e coragem.

Eu só tinha que retribuir da melhor forma. Com a minha voz, o meu ritmo e dar-lhes, a eles e ao público, o melhor de mim. Durante muito tempo pensei que se haviam esquecido de mim, mas afinal reparo que ainda sou uma influência para muita gente e isso é compensador. É uma dádiva. Dou graças Deus por estar vivo neste planeta a cores, de poder continuar a fazer o que me apetece e, quem sabe, ir a Portugal tocar ao vivo... [risos]." a primeira. Na gravação do álbum duas personagens revelaram-se essenciais ao sucesso da empresa: o cantor e compositor Joe Henry que produziu o disco e o organista Rudy Copeland, que habitualmente acompanha Burke nas sessões gospel da igreja. O primeiro compreendeu que a força e a intensidade dramática da sua voz não necessitavam de grandes adornos, optante por uma sonoridade descarnada, apenas recorrendo à presença da guitarra, secção rítmica e órgão, e o segundo contribui com a sua presença em todos os temas.

"Todo o processo foi muito rápido e directo", esclarece o veterano cantor. "Levei o organista que toca comigo na igreja e duas horas depois estávamos em estúdio a gravar tudo. Foi assim, fizemos o álbum em quatro dias. Foi tudo registado à primeira e, nesse aspecto, o Joe Henry foi fundamental, porque sabia exactamente o que queria.

Vi-o uma vez na minha vida, acheio-o simpático e confiei nele. Não conhecia a sua história, mas gostei muito de tomar o pequeno almoço com ele. Pelo que comeu percebi que tinha muita soul e só podia ser um bom produtor... [risos]. Em estúdio foi muito generoso e calmo comigo. Não sou uma pessoa fácil... [risos]. Mas ele soube lidar com toda a gente, músicos e cantores, da melhor forma".

A vida de Solomon Burke é também feita de memórias. Ao longo dos anos cruzou-se com muita gente, fez amigos e cúmplices, e gosta de falar dessas experiências. "James Brown é, provavelmente, o maior showman' e todos os tempos. Não existe ninguém como ele. É um mestre no que faz, é um performer completo. Vi-o trabalhar no duro e respeito-o imenso".

E John Lee Hooker? "O máximo. No meu livro pessoal está escrito todo um parágrafo sobre John. A nossa relação remonta aos anos 50 e é um grande amigo. Sinto-me satisfeito pelo seu trabalho ser hoje reconhecido, porque nem sempre passou bem. Agora, é alguém que consegue gozar a vida e isso é o mais importante. É importante darmos a nós próprios essa oportunidade. Não existe nada pior do que desistirem de nós. Aí em Portugal não desistam de mim!". Claro que não, Burke.

Texto publicado no suplemento Y, a 5 de Julho de 2002
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