"Quando Aretha Franklin canta, é a história americana que jorra"

Muito próxima de Martin Luther King e de outras figuras da luta pelos direitos civis dos negros, Aretha Franklin viu a sua versão de Respect tornar-se, em 1967, um hino desse movimento. Quase meio século depois, o primeiro presidente afro-americano dos Estados Unidos, Barack Obama, ouviu-a cantar Natural woman e não conseguiu conter as lágrimas.

Aretha Franklin no Appolo Theater, em 1971
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Aretha Franklin no Appolo Theater, em 1971
Martin Luther King e C. L. Franklin na marcha de Detroit, em 1963
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Martin Luther King e C. L. Franklin na marcha de Detroit, em 1963

Filha do pastor baptista C. L. Franklin (1915-1984), figura de relevo do movimento de luta contra a discriminação dos negros americanos nos anos 50 e 60, Aretha Franklin conviveu desde muito nova com Martin Luther King, que era amigo da família, e chegou mesmo a acompanhá-lo em digressões pelo país, cantando em serviços religiosos e comícios. “Tinha acabado de deixar a escola, via como era importante o que o Dr. King estava a tentar fazer, e pedi ao meu pai para viajar com ele”, lembrou a cantora em 2014, numa entrevista televisiva conduzida pelo reverendo Al Sharpton.

A cantora teria então 15 anos, a idade com que abandonou os estudos, mas já era mãe de um filho e lançara no ano anterior o seu primeiro álbum, Songs of Faith, gravado na igreja do pai, a New Bethel Baptist Church em Detroit, no Michigan. Alguns anos depois, em Junho de 1963, os reverendos Franklin e King desfilariam juntos na marcha pelos direitos civis que o primeiro organizou em Detroit, e que serviu ao segundo como balão de ensaio para testar o célebre discurso “I have a dream”, com o qual iria depois galvanizar, no final de Agosto, os 250 mil manifestantes que participaram na marcha sobre Washington.

O prestígio de C. L. Franklin – diziam que tinha uma voz que valia milhões, e o reverendo empregava-a proveitosamente nos seus sermões, tão apreciados que começaram a ser difundidos na rádio e gravados em disco – atraiu também a sua casa alguns dos cantores mais envolvidos na luta contra a segregação racial, como Harry Belafonte, Mahalia Jackson ou Sam Cooke, com os quais Aretha privou desde muito nova.

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Aretha Franklin em acção no Caesars Palace, Las Vegas, em 1969 Reuters

“A música é a alma do movimento”, escreveu o próprio Luther King. E tendo em conta o seu contexto familiar e o seu precoce e extraordinário talento como cantora, Aretha Franklin estava destinada a tornar-se, também ela, um ícone (apetece acrescentar “natural”) da luta pelos direitos civis. Mas se indiscutivelmente o foi, acabou por devê-lo menos ao seu efectivo activismo juvenil do que ao facto de a sua versão de Respect, um tema de Otis Redding que gravou em 1967, se ter transformado do dia para a noite não apenas num hino feminista, mas também num protesto contra a discriminação racial.

Uma circunstância que a cantora garante não ter pretendido ou antecipado, mas que resulta quer das cirúrgicas alterações que ela e a sua irmã Carolyn introduziram na letra original, quer da intensidade da sua interpretação, que transformaram mais uma canção sobre o homem que trabalha no duro para trazer dinheiro para casa, e apenas exige em troca que a mulher o respeite, numa espécie de grito de guerra que captava exemplarmente o sentimento de urgência de um tempo de mudança.

Respect foi lançado em 1967, num país onde se sucediam as manifestações contra a guerra do Vietname, dezenas de milhares de hippies convergiam para São Francisco, o epicentro do tsunami psicadélico, as lutas pela igualdade de género davam os primeiros passos e os motins raciais incendiavam as cidades americanas: os mais violentos ocorreram precisamente na Detroit de Aretha Franklin, onde no final de Julho desse ano morreram 43 pessoas e centenas ficaram feridas.

A change is gonna come, previra Sam Cooke em 1963, na canção que escreveu após ter sido impedido de entrar num hotel só para brancos. Times they are a changin’, confirmaria Bob Dylan no ano seguinte. Mas em 1967 ainda havia muito por  mudar: I Never Loved a Man the Way I Love You, o álbum que tinha Respect como tema de abertura, fora já lançado há alguns meses quando o Supremo Tribunal dos Estados Unidos aprovou a histórica decisão de considerar inconstitucional toda a legislação estadual que proibisse os casamentos inter-raciais.

"O Dr. King mudou a minha vida"

I Never Loved a Man the Way I Love You, primeiro álbum da cantora na Atlantic Records, teve um extraordinário sucesso – em Maio, o single Respect já estava no topo dos mais vendidos – e consagrou Aretha Franklin como uma das grandes cantoras do seu tempo. Quando esta regressa a Detroit, a 16 de Fevereiro de 1968, para actuar no Cobo Hall, é já uma estrela mundial. O concerto, ao qual assistirão 12 mil pessoas, é de tal ordem que o presidente da Câmara não se contém e institui logo ali a data de 16 de Fevereiro como o “dia de Aretha Franklin”. Mas a subida ao palco que causou maior impacto não foi a sua, antes a de Martin Luther King, que voou propositadamente para Detroit para entregar à cantora um prémio em reconhecimento do seu contributo para a definição da identidade afro-americana.

O líder do movimento dos direitos civis é assassinado dois meses mais tarde, em Abril de 1968, e é Aretha Franklin quem canta no seu funeral o hino Take my hand, precious Lord. “Era um dos seus favoritos, e pedia-me sempre que o cantasse quando viajávamos juntos”, justificará mais tarde.

Em Agosto desse ano, já depois do assassinato de Robert Kennedy, em Junho, Aretha Franklin cantou o hino dos Estados Unidos na convenção nacional do Partido Democrata que apontaria como candidato Hubert Humphrey, depois derrotado pelo republicano Richard Nixon. Militante do Partido Democrata, a cantora estará também na gala da tomada de posse de Jimmy Carter, em 1977, a interpretar God bless America.

Ao longo da vida, Aretha Franklin apoiará de muitas formas, incluindo financeiramente, a luta contra a discriminação dos afro-americanos nos Estados Unidos, mas nunca foi, como ela própria sublinhará repetidamente, uma activista no sentido mais estrito. “Não estava na linha da frente”, diz numa entrevista à CNN em 2015. O que não impede que tenha sido considerável, e desde cedo reconhecido, o papel que a sua música e a sua personalidade desempenharam na luta contra o racismo e o sexismo. E se a cantora sempre procurou relativizar esse impacto é talvez por estar mais segura do movimento inverso: “Por causa do Dr. King e do movimento dos direitos civis, a minha vida mudou para sempre”, afirma numa entrevista de 2014.

Em 2005, George W. Bush atribui-lhe a Medalha Presidencial da Liberdade, a mais alta condecoração civil do país. Nesse mesmo ano faz questão de cantar no funeral de Rosa Parks, veterana da luta contra a segregação racial, a mulher negra do Alabama que, 50 anos antes, em 1955, tivera a coragem de recusar-se a ceder o seu lugar a um branco num autocarro.

Em 2009, Aretha Franklin canta My country ‘tis of thee na tomada de posse do primeiro presidente afro-americano dos Estados Unidos, Barack Obama, actuação que depois evocará na já referida conversa com Al Sharpton: “Foi espantoso ver aquelas vagas de gente até onde a vista alcançava, sabendo o que significava aquele momento histórico.”

Obama voltará a ouvi-la ao vivo em Dezembro de 2015, e dessa vez não conseguiu conter as lágrimas. O presidente assistia à gala anual de atribuição dos prémios de carreira do Kennedy Center, em Washington, e um dos artistas homenageados era a cantora e compositora Carole King, co-autora de (You make me feel like a) Natural woman. Sem que King ou os restantes convidados soubessem, pediram a Aretha Franklin que subisse ao palco para interpretar essa canção, que esta gravara e lançara em 1967 e que se tornaria um dos seus temas mais conhecidos. Dando provas de uma vitalidade prodigiosa, e que torna ainda mais pungente a rapidez com que a sua saúde depois declinaria, a cantora de 73 anos deitou verdadeiramente a casa abaixo. Começou a cantar sentada ao piano, mas depois levantou-se, e quando se libertou do casaco de peles e o atirou para o chão, preparando-se para chegar às notas mais altas, toda a gente se ergueu espontaneamente das cadeiras, a aplaudi-la de pé. Carole King abria a boca de comovido espanto, Obama limpava as lágrimas.

Não foi a última vez que Aretha Franklin subiu a um palco. Em 2016 foi à Casa Branca despedir-se de Barack e Michelle Obama, e antes de começar a cantar resumiu o que tinha a dizer numa frase breve: “I hate to see you go”. A sua derradeira actuação pública, em Novembro de 2017, dedicou-a à luta contra a sida, cantando em Nova Iorque numa gala da Elton John AIDS Foundation.

Mas é a interpretação de Natural woman no Kennedy Center que merece ficar para a história como o seu verdadeiro adeus. Por ser uma actuação espantosa, mas também porque na intensidade das emoções que provocou se adivinha o inextricável efeito conjugado de tudo o que Aretha Franklin foi: talvez a maior cantora de todos os tempos (a Rolling Stone acha que sim), mas também a mulher negra independente, destemida, talentosa, que exigia e impunha respeito, como na canção, e que se tornou para muitos o símbolo vivo das mudanças sociais e culturais que a América atravessou nos anos 60.

Obama disse-o melhor quando tentou explicar a comoção que sentiu no seu camarote do Kennedy Center. “Ninguém encarna tão completamente a ligação entre os espirituais afro-americanos, os blues, o R&B e o rock'n'roll, o modo como a adversidade e o sofrimento são transformados em algo cheio de beleza e vitalidade e esperança. Quando Aretha Franklin canta, é a história americana que jorra."

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