Camarão e sempre pronto a defender a Pátria

Quem manda, finge que não sabe. Quem não manda, finge que não há. Quem recebe baldes de camarão e de notas — parece que era assim — faz o que tem a fazer. E ninguém quis nunca verdadeiramente mexer muito nisto, porque isso daria imenso trabalho, imensos problemas e tornaria especialmente qualquer líder civil com responsabilidades na área num alvo débil, pronto a ser trucidado.

Aquilo que se sabe publicamente até este momento sobre o furto de armas de Tancos, sem prejuízo da avaliação que será feita na justiça, é mais do que suficiente para questionar legitimamente o que se passará ainda mais nas Forças Armadas ao arrepio da lei e da decência.

Na imprensa de ontem, aliás, surgia uma notícia extraordinária — outra — sobre o alegado arrendamento a turistas, como alojamento local, de casas sociais do Estado atribuídas a militares. Ainda há poucos meses descobríamos um último processo de alegada corrupção, através de sobrefacturação e outros esquemas, em messes das Forças Armadas, que presumo que neste momento esteja em julgamento. Aí pagar-se-iam favores e contratos de comidas em euros, mas também em álcool e camarão, essa moeda franca, universal, que dispensa depósito bancário e que vai bem em dueto.

De facto, num país onde contratos milionários de armas e equipamentos são muito esporádicos, onde a actividade das Forças Armadas é residual e onde não se espera ou exige nem grandeza nem transparência aos militares, parece haver um terreno aberto para este tipo de subterfúgio proliferar. O pequeno. O manhoso. Aquele que vive na sombra, mas não na escuridão: vive e cresce numa meia sombra e numa meia luz, por ser seguramente conhecido e consentido por muitos, que nele vêm até uma legitimidade própria, uma necessidade natural de coesão de corpo.

Nada disto é de hoje, como sabemos. Faz parte de uma lógica particular de caserna, provavelmente com décadas, e que não será exclusiva das Forças Armadas. Quem manda, finge que não sabe. Quem não manda, finge que não há. Quem recebe baldes de camarão e de notas — parece que era assim — faz o que tem a fazer. E ninguém quis nunca verdadeiramente mexer muito nisto, porque isso daria imenso trabalho, imensos problemas e tornaria especialmente qualquer líder civil com responsabilidades na área num alvo débil, pronto a ser trucidado.

Mas, convenhamos, quando falamos de um conluio entre ladrões de armas e militares para excluir órgãos de investigação criminal da própria investigação e repor silenciosamente a honra violada do Exército, estamos já no domínio da loucura. Mesmo quando no plano teórico se pode defender a proliferação de órgãos de polícia criminal e alguma indiferenciação ou mesmo concorrência nas suas competências, como sucede hoje entre nós, como método para evitar poderes absolutos e singulares na investigação criminal — entre nós, não sei se terá sido resultado de grande reflexão... –, creio que não será nisto que se pensa...

Era bom que este episódio servisse de facto para que algo mudasse. Mas mudasse como devem mudar as coisas em determinados níveis. Por uma vez com grandeza e determinação. Com sentido de futuro e de decência. Para que as Forças Armadas deixem de ser apoucadas e identificadas pela pequenez de alguns dos seus e sejam efectivamente conhecidas e valorizadas pelo que fazem bem.

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