Um manifesto a exortar Governo a apostar no acolhimento familiar

Documento surgiu da indignação de um delegado australiano e é apresentado na tarde desta sexta-feira no Porto.

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Em Portugal, só 3,2% das crianças à guarda do Estado estão em famílias de acolhimento Daniel Rocha (arquivo)

Paul McDonald é só um entre 700 delegados de 45 países que se encontram na conferência bienal da EUSARF, a Associação Científica Europeia para o Acolhimento Residencial e Familiar de Crianças e Jovens, que decorre no Porto desde terça-feira. Indignou-se como nenhum outro com a quantidade de crianças que Portugal tem a crescer em lares de infância e juventude e escreveu um manifesto que será apresentado no encerramento, esta sexta-feira à tarde, e que seguirá para o Governo e para o Presidente da República.

Esta é a principal conferência mundial sobre políticas e práticas de investigação em matéria de acolhimento de crianças e jovens. Atrai investigadores, técnicos, decisores e estudantes do mundo inteiro. Desta vez, foi organizado pelo Grupo de Investigação e Intervenção em Acolhimento e Adopção da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto.

Logo no discurso de abertura, Paul McDonald e outros delegados ficaram a saber que “Portugal está atrás do resto do mundo ocidental” em matéria de protecção. Maria Barbosa Ducharne, professora auxiliar da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, explicou que o Estado concentra cerca 97% das crianças que tem à sua guarda em unidades residenciais. Em muitas dessas unidades, há mais de 50 crianças. Quase todos os menores de três anos (99%) estão ao cuidado de alguma instituição.

Paul McDonald, director executivo de uma organização australiana que presta serviços de protecção à infância e à juventude, ficou ainda mais espantado quando tudo isso foi enquadrado no contexto global. Portugal estava no fundo da lista, com 3,2% de crianças à guarda do Estado em famílias de acolhimento. E a Austrália no topo da lista, com mais de 90%.

Na Austrália, só 5% das crianças que estão à guarda do Estado estão a crescer em unidades residenciais. E estão quatro por cada. “Não há notícia de lares com dez, 20 ou 40 crianças”, afiança.

Naquela noite, Paul McDonald perdeu o sono. No dia seguinte, procurou Maria Barbosa Ducharne, responsável máxima pela organização do congresso. Tinha de fazer alguma coisa.

Os peritos falam em “anomalia de Portugal na protecção de crianças”. Isto porque há provas de que as crianças têm melhores cuidados de um modo geral, melhores oportunidades e melhores resultados se crescerem numa família de acolhimento, por comparação a uma unidade residencial. E que “o cuidado institucional é um modelo antiquado e prejudicial”.

Partindo deste quadro, Paul McDonald decidiu dar um passo sem precedentes neste encontro: escrever ao Governo, pedindo-lhe que “corrija esta situação”, que trate de “implementar urgentemente uma estratégia” para promover o acolhimento familiar profissional e o acolhimento em família alargada como o modelo preferencial para todas as crianças que se encontram à guarda do Estado.

O documento final acabou por estar dirigido também ao Presidente da República, de quem Paul McDonald e os aliados esperam que exerça a sua magistratura de influência. E é esta tarde apresentado pelo presidente da associação, Hans Grietens, professor na Universidade de Groningen, na sessão de encerramento. Uma vez obtida a subscrição colectiva, seguirá para os mais altos responsáveis políticos.

“As pessoa estão entusiasmadas por haver uma acção concreta”, diz Maria Barbosa Ducharne. “Quem trabalha e faz investigação nesta área não pode aceitar que esta situação se mantenha”, prossegue. “Uma das grandes motivações para organizar este megacongresso era a esperança de que isto pudesse ajudar a alterar alguma coisa no país.”

Não é um reparo inédito. Portugal tem merecido consecutivos reparos do comité que acompanha a aplicação da Convenção dos Direitos da Criança por ser um dos países da Europa ocidental com maior proporção de meninos e meninas em acolhimento residencial.

Em Setembro de 2015, a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo passou a mandar privilegiar as famílias de acolhimento, sobretudo se os menores tiverem menos de seis anos. Era preciso rever o Decreto-Lei n.º 11/2008, de 17 de Janeiro, que estabelece o regime de execução do acolhimento familiar.

Essa revisão nunca se fez. Questionado pelo PÚBLICO, em Agosto deste ano, o gabinete de imprensa do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social fez saber que, “pela sensibilidade e tecnicidade que o tema merece, foi criado um grupo de trabalho para analisar a regulamentação da lei do acolhimento familiar e residencial". Esse grupo de trabalho terá entregue "as suas conclusões à tutela no final de Julho passado". Para já, permanecem longe dos holofotes.

Ainda não são conhecidos os dados relativos a 2017. O Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social afirmou então que o relatório de Caracterização Anual da Situação de Acolhimento, habitualmente apresentado entre Junho e Julho, seria divulgado em Setembro, no início da sessão legislativa.

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