Famílias de acolhimento para crianças em perigo à espera de regulamentação da lei de 2015

A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tem concluído um projecto de selecção de famílias de acolhimento para permitir que as crianças mais pequenas não sejam colocadas em instituições, como recomenda a lei de protecção de 2015. O plano ainda não avançou por falta de regulamentação do diploma.

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Em 2016, quase mil crianças até aos cinco anos estavam acolhidas em instituições Daniel Rocha

A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) tem uma campanha de sensibilização pronta a ser lançada para constituir uma bolsa de, pelo menos, 100 famílias de acolhimento seleccionadas e formadas para acolherem crianças e jovens em perigo. O objectivo é que estas famílias de acolhimento sejam uma alternativa à institucionalização em residências quando as crianças têm de ser retiradas às famílias biológicas. O plano existe há mais de um ano, mas aguarda a regulamentação de uma lei que está em vigor desde Setembro de 2015.

A lei recomenda que, no caso de crianças retiradas à família biológica, se privilegie o acolhimento numa família, em especial quando têm até seis anos. Mas, na realidade, só para 261 foi encontrada esta resposta. Perto de oito mil viviam em 2016 em residências de acolhimento, de acordo com os dados oficiais mais recentes. Olhando apenas para as mais novas, até aos cinco anos, 18 crianças estavam em famílias de acolhimento, enquanto 969 viviam em instituições.

Sobre a demora no lançamento da campanha, a SCML, através do gabinete de imprensa, esclareceu em respostas ao PÚBLICO: “Ainda no decorrer do ano de 2017, a Santa Casa concretizou todas as medidas necessárias para estar em condições de avançar com a campanha de sensibilização e angariação de famílias de acolhimento no âmbito da Lei de Promoção e Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, estando neste momento a aguardar pela aprovação da regulamentação da respectiva lei." E acrescenta que uma proposta de regulamentação foi entregue pelo grupo de trabalho, constituído por elementos do Instituto da Segurança Social, SCML e Casa Pia, em Julho de 2018.

De acordo com a legislação, o acolhimento familiar resulta da "atribuição da confiança da criança ou do jovem a uma pessoa singular ou a uma família, habilitadas para o efeito, proporcionando a sua integração em meio familiar e a prestação de cuidados adequados às suas necessidades e bem-estar e a educação necessária ao seu desenvolvimento integral”. 

O acolhimento familiar é concebido para ser temporário. A criança não perde os laços com os pais biológicos (como acontece na adopção). E uma família candidata ao acolhimento não pode estar na lista de famílias candidatas à adopção. 

Previa-se que a regulamentação da lei, da iniciativa do Governo, ficasse concluída num prazo de quatro meses a partir da entrada em vigor em Setembro de 2015. Sobre os motivos para isso não ter acontecido até agora, o gabinete de imprensa do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS), que tutela o Instituto da Segurança Social (ISS), justifica: “Pela sensibilidade e tecnicidade que o tema merece, foi criado um grupo de trabalho para analisar a regulamentação da lei do acolhimento familiar e residencial."

O processo de regulamentação está "em fase de conclusão", acrescenta, depois de o grupo de trabalho, também referido pela SCML, ter entregado "as suas conclusões à tutela no final de Julho passado".

Proposta entregue 

Já em 2016, o Instituto da Segurança Social dizia ao PÚBLICO que seria preciso rever um quadro legal aprovado em 2008 para estabelecer o regime do acolhimento familiar, de forma a adequar à lei de protecção de crianças e jovens de 2015. Essa revisão não chegou a ser feita.

Nessas respostas de Novembro de 2016, o ISS admitia a possibilidade de criar uma bolsa de famílias de acolhimento e pensava, ainda antes, lançar uma campanha de sensibilização. Também isso não aconteceu.

Quando tomou posse, em Dezembro do ano passado, o provedor Edmundo Martinho previu que a SCML já estaria em condições de lançar essa campanha (de grande dimensão, com spots publicitários nas televisões e cartazes na rua) ainda antes do fim de 2017, e confirmou que ainda não existia nenhuma família de acolhimento em Lisboa. 

Numa entrevista ao PÚBLICO, Edmundo Martinho (que foi presidente do conselho directivo do Instituto da Segurança Social) acrescentava que a campanha só ainda não tinha avançado por ser preferível “articular com a Segurança Social”, justificando o compasso de espera com a desejável uniformidade do sistema de acolhimento familiar em Lisboa e no resto do país.

Também defendia “a aposta no acolhimento familiar" não apenas "para dar cumprimento" à lei mas como opção resultante da "constatação científica de que, para as crianças mais pequenas, o acolhimento familiar é uma resposta muito mais sólida e que vai mais ao encontro dos seus direitos”. 

Relatório adiado

Em Janeiro de 2017, também numa entrevista ao PÚBLICO, Rui Godinho, director para a Infância e Juventude da SCML, ia mais longe na sua interpretação da legislação: “A nova lei de protecção diz que as crianças com menos de seis anos não podem estar em instituições, têm de estar em famílias de acolhimento. Mas não há famílias de acolhimento." E lamentava: "As casas para crianças em perigo não estão preparadas para as acolher."

Um dos projectos prioritários do seu departamento, na SCML, visava além de seleccionar e formar famílias de acolhimento para crianças em perigo, “dotar as casas [de acolhimento] de um modelo terapêutico e efectivamente protector das crianças” retiradas às suas famílias.

Os dados relativos a 2017 sobre acolhimento ainda não foram divulgados. O Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social explica que o relatório CASA (Caracterização Anual da Situação de Acolhimento), que retrata a situação do acolhimento em Portugal e é habitualmente apresentado entre Junho e Julho e entregue à Assembleia da República, só será divulgado em Setembro, no início da próxima sessão legislativa.

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